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Quando a Zoe se juntou ao grupo, ela sentia-se assoberbada com tudo. Se outra criança se aproximava, ela batia ou mordia-lhe. Não falava e isolava-se das outras crianças. Manuela, um elemento da equipa educativa, foi de um modo progressivo e cuidadoso estabelecendo contacto com a Zoe, mostrando-lhe que a compreendia. Manuela permanecia calma e os seus comportamentos e respostas eram previsíveis e consistentes, mesmo quando a Zoe estava muito zangada. Gradualmente foi ganhando a sua confiança e, eventualmente, a Zoe começou a brincar, também, com as outras crianças do grupo.

Com o crescente afluxo de refugiados a diversos países europeus, um número crescente de crianças, que sofreu experiências de trauma, passou a frequentar os equipamentos de educação e cuidados da primeira infância dos países de acolhimento. Pelas suas vivências, estas crianças encontram-se em risco de apresentarem problemas de desenvolvimento. Acrescente-se que as crianças vítimas de abuso, negligência e/ou violência doméstica se encontram, também elas, em risco. As consequências da vivência de eventos traumáticos, nos primeiros anos de vida, podem ter um profundo impacto no desenvolvimento saudável (e.g., neurológico, emocional, social, cognitivo) da criança.

Dois tipos de trauma

O primeiro tipo de trauma, e provavelmente o mais conhecido, é o transtorno de Stress Pós-traumático, também, conhecido como “Trauma Único”. Este é resultado de um grande evento traumático (ou de um número reduzido de eventos traumáticos) que leva a vítima a reviver o acontecimento ou a ter pesadelos sobre o mesmo. O segundo tipo de trauma é o trauma desenvolvimental (1), também conhecido como Trauma Complexo ou Trauma Crónico da primeira Infância. Este pode manifestar-se em crianças que têm sido vítimas de acontecimentos traumáticos a longo-prazo. Este tipo de trauma pode ocorrer quando o período deste tipo de eventos é duradouro e ocorre na primeira infância, onde grande parte da arquitetura do cérebro é moldada. O desenvolvimento normativo poderá ser profundamente afetado por um sistema de stress sobre-activo, apresentando estas crianças dificuldades ao nível da regulação emocional e comportamental, da vinculação ou da sua noção de Self. Embora ambos os tipos de trauma tenham semelhanças, o stress-pós-traumático não é diagnosticado em crianças com idades inferiores a 6 anos.

Trauma complexo: Stress contínuo e estado de hiper-alerta

De acordo com Peter Adriaenssens, um psiquiatra belga de crianças e adolescentes, o trauma pode ser considerado “como uma fonte de stress tóxico que se instalou no corpo e mente, e por isso afeta o nosso ser”. Crianças com Trauma Complexo são geralmente híper-vigilantes, em constante alerta, e respondem a qualquer acontecimento (um pouco) negativo, com respostas de luta, fuga ou imobilização (“freeze”). Assim, em contexto de interações com pares (e não só), estas crianças apresentam dificuldades em estabelecer relações positivas com os outros.

Reconhecendo o trauma

Um elevado número de crianças que sofreram de trauma apresentam (entre outros) problemas comportamentais. Sem informação sobre a história de vida da criança, estes problemas poderão parecer, ou ser interpretados como sintomas de, por exemplo, Deficit de Atenção e de Hiperatividade. Nem sempre é fácil determinar se os comportamentos da criança resultam do trauma. Nos bebés, o trauma pode manifestar-se através de menos apetite, inquietude, sonos de curta duração, choro excessivo (face aos estímulos do meio), o assustar-se facilmente, expressão ansiosa, apatia e níveis reduzidos de brincadeira. Com crianças mais velhas, em idade pré-escolar, pode assistir-se ao regredir para comportamentos mais imaturos (e.g., chuchar no dedo ou voltar a fazer xixi na cama), de carência, ou birras frequentes. Podem ser descritas como irritáveis e difíceis de tranquilizar, como discutindo muito ou, pelo contrário, retraírem-se. Se enquanto profissional de educação, e face aos comportamentos observados de modo consistente na criança, tiver dúvidas sobre uma potencial situação de trauma, tente inicialmente conversar com a família de modo a contextualizar e compreender os seus comportamentos.

Orientação e educação sensível ao trauma

Uma educação sensível ao trauma significa ensinar ou supervisionar com conhecimento sobre o que é trauma e as suas potenciais consequências para o desenvolvimento das crianças. Sabendo mais sobre o fenómeno, estará mais apta/o a compreender e a ser sensível aos comportamentos de crianças que vivenciaram experiências traumáticas.

  • Como profissional que tem uma criança que experienciou trauma na sua sala é importante que as suas atitudes e comportamentos ofereçam tranquilidade, confiança e previsibilidade.
  • É, também, importante que permaneça calma/o, dado que a zanga é sentida como perigo pela criança. Para ajudar a criança a regular os seus comportamentos e emoções é importante que permaneça calma/o e disponível, dando-lhe espaço para se necessário expressar as suas emoções.
  • Haver uma estrutura e expectativas claras ao longo do dia para a criança é, também, organizador.  
  • Tenha particular atenção a estas crianças, especialmente às que se tendem a isolar. Converse com elas, mas dê-lhes também tempo e espaço para brincarem sozinhas se assim o quiserem.
  • Encoraje as interações no grupo: “deixe que as crianças cuidem umas das outras”. Trabalhe com elas no sentido de estas aprenderem a respeitar os comportamentos umas das outras, em particular das crianças mais difíceis (que experienciaram trauma): não se zangando, mas esperando e conversando, ou pedindo a ajuda de um adulto.
  • Seja paciente. Este tipo de trabalho e abordagem nem sempre têm resultados imediatos e visíveis, mas as sementes já podem estar lançadas.

Referências

Fegert, J. M., Diehl, C., Leyendecker, B., Hahlweg, K., Prayon-Blum, V., & the Scientific Advisory Council of the Federal Ministry of Family Affairs, Senior, Citizens, Women and Youth (2018). Psychosocial problems in traumatized refugee families: Overview of risks and some recommendations for support services. Child and Adolescent Psychiatry and Mental Health, 12. doi:10.1186/s13034-017-0210-3

[1] Van der Kolk, B. A. (2017). Developmental Trauma Disorder: Toward a rational diagnosis for children with complex trauma histories. Psychiatric Annals, 35(5), 401-408

Mais informação sobre trauma

https://www.nctsn.org/what-is-child-trauma/trauma-types/refugee-trauma

https://www.nctsn.org/what-is-child-trauma/trauma-types/complex-trauma

Tradução e adaptação de Lígia Monteiro

O trauma em crianças pequenas: O que poderá um/a profissional na área da educação fazer?

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