Autora: Hilde Stroobants (UCLL, Bélgica). Mensagem original disponível em EarlyYearsBlog.eu
Possivelmente já encontrou, nas redes sociais, imagens maravilhosas de construções complexas e mandalas equilibradas, elaboradas com bonitas peças soltas. As peças soltas estão a tornar-se elementos populares nos contextos de primeira infância por várias razões. Uma delas: por proporcionarem práticas adequadas ao desenvolvimento.
O que são peças soltas?
Peças soltas são materiais de fim aberto que são suficientemente atraentes para as crianças e convidam a ilimitadas possibilidades de manipulação e interação. Varas para bater, batucar, rolar, apontar e lançar, desenhar na areia, construir um acampamento, usar uma vassoura ou um mastro de uma bandeira numa luta de espadas. Discos de madeira para empilhar, escorregar e fingir cozinhar. Todos os tipos de blocos ou caixas para ordenar, contar, alinhar e para se esconder. Tubos de papel resistentes para rolar, deslizar materiais, ver ou escutar através deles, esconder materiais e acenar como extensões dos braços. Pedras de vidro para mexer com as mãos e desfrutar do som e da imagem e da sensação das pedras frias ao deslizarem sobre as mãos, mas também como jóias para decorar as construções acabadas de criar. Em resumo: qualquer material que possa ser usado com diversos fins e que seja atraente o suficiente para ser agarrado e manipulado pelas crianças, várias vezes, por ser uma peça solta. Nesse sentido, materiais sensoriais como areia, argila, lama, água e até luz e vento também podem ser considerados peças soltas.
O que é o brincar com peças soltas?
As crianças decoram grandes desenhos de árvores de Natal com tampas de garrafas e pedrinhas de vidro. “Eu desenhei as árvores no quadro e elas decoraram-nas como quiseram. Isto continua a ser brincar com peças soltas?”, pergunta a educadora. Carla Gull (2017) escreve que “brincar com peças soltas inclui exploração, experimentação e interações criativas, imaginativas e lúdicas com todos os tipos de variáveis. No brincar com peças soltas, as crianças têm a liberdade de explorar e combinar materiais e reagir a temas complexos e ideias que surgem.”. Há um continuum entre, por um lado, a decoração da árvore dirigida pela educadora, na qual um modelo visual ou as instruções verbais da educadora direcionam a forma que a decoração terá e, por outro lado, a decoração dirigida pelas crianças que começa com o seu interesse em decorar a árvore, a escolha dos materiais, os locais onde será colocada e quando estará “terminada”. Quanto mais estiver nas mãos da criança, mais poderemos definir a sua atividade como “brincar”.
Porque é o brincar com peças soltas considerado uma prática adequada ao desenvolvimento?
Durante a primeira infância, as práticas adequadas ao desenvolvimento não consideram apenas a idade das crianças, mas também o contexto e a cultura em que crescem. No brincar com peças soltas dirigido pelas crianças, as crianças conhecem os materiais a partir do seu desenvolvimento.
Na área dos blocos, Charles, Mehran e Bianca despejaram uma caixa com blocos coloridos. Charles está a construir um estábulo para os cavalos, enquanto Mehran empilha torres. “O Mehran está a construir um castelo”, diz Charles. Bianca apanha alguns blocos retangulares verdes e amarelos e começa a fazer uma fila com o padrão: um verde, um amarelo,… existem, contudo, mais blocos amarelos. Imediatamente, Bianca reorganiza um novo padrão: dois amarelos, um verde. Isso permitirá um caminho mais longo. Quando fica sem blocos retangulares verdes, procura mais na área dos blocos e encontra dois quadrados verdes, aproxima-se do Charles e pergunta-lhe se poderá trocar um retângulo verde pelos dois quadrados. Charles fica com algumas dúvidas. Bianca mostra como os dois quadrados se encaixam perfeitamente no espaço em que o retângulo está. Bianca ajuda Charles a tirar o rectângulo, fazem a troca e cada um volta ao seu jogo.
Se observarmos com atenção, brincar com peças soltas pode tornar visíveis os diferentes esquemas, interesses, capacidades e perguntas das crianças. As crianças estão a alinhar, contar, classificar, empilhar, construir, padronizar,…? Os esquemas dizem-nos algo sobre os conhecimentos que as crianças estão a desenvolver. Estarão a explorar ou a experimentar? Reconhecemos hipóteses, as crianças expressam um interesse particular num determinado conteúdo, podem negociar, persistem …? Estas perguntas ajudam-nos a compreender o desenvolvimento das crianças. E, qualquer que seja o objetivo, precisamos de começar onde as crianças estão, não por onde gostaríamos que estivessem, em termos de desenvolvimento.
Qual é o nosso papel no brincar com peças soltas?
Ir ao encontro das crianças e do seu desenvolvimento é essencial, mas importa que o/a educador/a não fique só por aí [2]. É por isso que, em ambientes onde o brincar com peças soltas é desenvolvimentalmente adequado, os adultos fornecem as peças soltas e tornam-nas acessíveis e disponíveis. Apoiam as iniciativas e as perguntas das crianças. Garantem que as crianças podem explorar e descobrir novas ideias. Procuram oportunidades para expandir e aprofundar a aprendizagem, permitindo brincadeiras abertas e promovendo relações e experiências significativas [3]. Por outras palavras: os adultos facilitam a aprendizagem e o desenvolvimento, sem os forçar à criança.
“Várias competências no domínio emocional e social, como a independência, a responsabilidade, a autorregulação e a cooperação, influenciam quão bem as crianças fazem a transição para a escola e o seu sucesso nos anos seguintes ” [2]. As crianças que brincam com peças soltas praticam a independência, a responsabilidade, a autorregulação e a cooperação. Carla Gull (2017) afirma ainda que “através da exploração de peças soltas, as crianças desenvolvem a imaginação, a criatividade e as competências de colaboração. O processo é mais importante que o produto final, promovendo o crescimento e o desenvolvimento global.”
Quando as crianças da sala da Educadora Janice estão envolvidas, enchendo e esvaziando vasos e baldes na mesa de água, Janice garante que as crianças têm acesso a uma variedade de vasos, panelas, peneiras e funis interessantes. Nos dias seguintes, as crianças familiarizam-se com os conceitos de cheio, quase cheio, vazio, mais e menos… Quando Janice acrescenta um suporte com um funil num tubo transparente, algumas crianças ficam intrigadas com o fluxo de água. Para as crianças, o funil e o tubo levam a uma nova investigação sobre a trajetória: para onde vai a água? Algumas crianças começam a compreender que uma inclinação descendente leva a água para baixo e que, quando três crianças em conjunto colocam água no funil, o funil transborda. Para além disso, podem apontar o tubo em diferentes direções e a água faz com que os vasos e panelas que estão na mesa de água se movimentem. As crianças gritam, riem e mostram as suas descobertas aos adultos e crianças que estão na sala. Depois de uma boa exploração com o funil e o tubo, seguem-se outras experiências. Uma das crianças tenta impedir que a água flua para baixo. Isso leva, novamente, a novas descobertas e perguntas, aprofundando a aprendizagem sobre as trajetórias e a força da água. A criança que experimentou as implicações e as dificuldades em apontar e interromper o fluxo, mais tarde compreenderá o funcionamento de torneiras, comportas e barragens… com uma visão naturalmente mais prática do que a criança que não teve esta oportunidade.
Todas os domínios de desenvolvimento e aprendizagem – físico, social, emocional e cognitivo – são importantes e estão estreitamente relacionados [2]. No brincar com peças soltas, o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças num determinado domínio influenciarão e serão influenciados pelo que ocorre nos outros domínios. Educadores/as com práticas adequadas ao desenvolvimento percebem esses sinais de desenvolvimento e promovem oportunidades para as aprendizagens posteriores. É o que chamamos de construção de uma zona de desenvolvimento proximal.
As histórias da área dos blocos e da mesa de água são baseadas nas observações que a autora faz durante as visitas aos locais de estágio dos alunos da UCLL em Educação de Infância. Os nomes das educadoras e das crianças foram alterados.
Referências
[1] Gull, C. (2017). The theory of loose parts [Blog post]. Retrieved from: http://insideoutsidemichiana.blogspot.com/2017/09/the-theory-of-loose-parts.html
[2] NAEYC. (2009). Developmentally Appropriate Practice in Early Childhood Programs Serving Children from Birth through Age 8. A position statement of the National Association for the Education of Young Children. Retrieved from: https://www.naeyc.org/sites/default/files/globally-shared/downloads/PDFs/resources/position-statements/PSDAP.pdf
[3] Gull, C., Bogunovich, J., Goldstein, S. L., & Rosengarten, T. (2019). Definitions of Loose Parts in Early Childhood Outdoor Classrooms: A Scoping Review. International Journal of Early Childhood Environmental Education, 6(3), 37-52.