As crianças classificam, desde cedo, o mundo que as rodeia, de forma a compreendê-lo e a atribuir-lhe significado. O conceito de género é uma das primeiras categorias assimiladas pelas crianças. Educadores, familiares, pares, e outros agentes de socialização assumem um papel determinante na transmissão de conhecimentos, mas também de valores, preconceitos e estereótipos sobre as questões de género.

 

Ser ou ver-se como menino ou menina é um aspeto central na construção da identidade das crianças, que desde cedo interiorizam e fazem categorizações com base no conceito de género [1]. Por volta dos dois anos, por exemplo, as crianças selecionam brinquedos diferenciados do ponto de vista do género [2].

Numa iniciativa recente da associação Education and Employers [3], 66 crianças entre os 5 e os 7 anos de idade foram convidadas a desenhar várias profissões – bombeiro/a, cirurgião/ã, aviador/a. Das crianças participantes, 61 desenharam homens e 5 desenharam mulheres.

 

Esta iniciativa permite sensibilizar para a existência de estereótipos de género em idades precoces. Estereótipos de género dizem respeito a conjuntos de crenças organizadas e partilhadas, relativamente às características que identificam pessoas de diferentes sexos [4]. Os estereótipos de género podem estar relacionados com as ocupações profissionais, tal como ilustrado no vídeo, mas também com características físicas, traços de personalidade, comportamentos, ou papéis esperados [5].

Estereótipos de género no jardim de infância

O jardim de infância é um contexto em que as ideias sobre as diferenças de género são, muitas vezes, formadas e perpetuadas inadvertidamente. As crianças em idade pré-escolar assumem comportamentos consentâneos com as expectativas culturais sobre o que é apropriado fazer enquanto membro de determinado grupo, manifestando estereótipos referentes a homens e a mulheres [6].

Quantas vezes já ouvimos ou sugerimos que as meninas brincam às princesas, ou com os utensílios de cozinha, e os meninos com ferramentas ou legos? Ou sugerimos a prática de ballet às meninas, e a prática de karaté, ou de futebol, aos meninos? Quantos de nós já ouvimos ou fizemos afirmações partindo do pressuposto de que os meninos são mais ágeis e independentes, e as meninas mais frágeis e dóceis?

O Guião de Educação sobre Género e Cidadania para o Pré-Escolar [7] considera as questões de género uma componente fundamental da cidadania, salientando a especificidade do trabalho dos/as profissionais de educação de infância e apresentando propostas práticas de atuação. Recentemente, também o Conselho da Europa [8] reviu e ampliou uma compilação de boas práticas para a promoção de uma educação livre de estereótipos de género.

Investigação e boas práticas

A investigação tem indicado que a perpetuação de estereótipos de género tem implicações para o desenvolvimento das crianças, nomeadamente para a sua identidade, interesses e aspirações [9], podendo estar associada a comportamentos de segregação social e até comprometer o bem-estar geral das crianças [10]. Um ambiente que desconstrua e desmistifique estereótipos de género permitirá às crianças uma maior aceitação e flexibilidade, por exemplo, na escolha de brinquedos e de pares de brincadeira [11].

Assim, torna-se fundamental que:

  • As crianças tenham acesso a informação que lhes permita compreender a diversidade de oportunidades, papéis, funções e ocupações, de forma a ampliarem os seus interesses e aspirações. Convidar pais, ou voluntários da comunidade local, para visitarem a sala e falarem sobre a sua profissão, ou percurso profissional, podem ser boas formas de sensibilizar para esta diversidade. Esta sensibilização é particularmente pertinente para crianças de contextos desfavorecidos, que parecem ter menor acesso à diversidade de papéis associados ao género [12].

 

  • As crianças possam aceder e escolher livremente as atividades, materiais e companheiros de brincadeira, de acordo com a sua curiosidade e preferência, sem que estes lhes sejam sugeridos com base no género. Como organizamos os espaços da sala, e que materiais oferecemos a meninos e a meninas? Dispomos as áreas e os brinquedos de forma a que meninas e meninos brinquem juntos? Os materiais e espaços pedagógicos podem veicular conceções estereotipadas, pelo que devem ser cuidadosamente analisados [7].

 

  • Os/as educadores/as estejam atentos/as e observem as interações entre as crianças, reconhecendo-se a si próprios/as como sujeitos e veículos de preconceitos e estereótipos, que obviamente impactam nos trabalhos propostos, objetivos e critérios estabelecidos, expectativas e juízos formulados, comunicação ou comportamento verbal e não verbal [7]. Que oportunidades promovemos, e que bons ou maus comportamentos atribuímos a meninos e meninas? Costumamos chamar as crianças pelos seus nomes, ou enquanto grupo de meninas ou de meninos, para determinada atividade?

 

Enquanto profissionais de educação de infância e cuidadores, é primordial refletirmos sobre como entendemos e educamos para as questões de género, como valorizamos ou desvalorizamos, ainda que inconscientemente, estas questões, ou como trabalhamos com as crianças, sendo sensíveis às suas características e aos seus modelos culturais e familiares. Reflita connosco e partilhe as suas experiências e práticas.

 

Referências

[1] Vieira, C. (2006). É Menino ou menina? Género e educação em contexto familiar. Coimbra: Almedina.

[2] Alexander, G. M., Wilcox, T., & Woods, R. (2009). Sex differences in infants’ visual interest in toys. Archives of Sexual Behavior, 38(3), 427-433. doi: 10.1007/s10508-008-9430-1.

[3] Disponível em https://www.inspiringthefuture.org/redraw-the-balance/

[4] Silva, A., Araújo, D., Luís, H., Rodrigues, I., Alves, M. & Tavares, T. (2005). Cadernos de Coeducação: A Narrativa na Promoção da Igualdade de Género. Contributos para a Educação Pré-Escolar. Lisboa: Comissão para Igualdade e Direitos das Mulheres.

[5] Blakemore, J. E. O., Berenbaum, S. A., & Liben, L. S. (2013). Gender development. Psychology Press.

[6] Lopes da Silva, I., Marques, L., Mata, L., & Rosa, M. (2016). Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar. Lisboa: Ministério da Educação, Direção-Geral da Educação (DGE).

[7] Cardona, M. J., Vieira, C., Tavares, T. C., Uva, M., & Nogueira, C. (2010). Guião de Educação: Género e Cidadania no Pré-Escolar. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Disponível em https://goo.gl/mFtBga.

[8] Council of Europe (2015). Compilation of good practices to promote an education free from gender stereotypes and identifying ways to implement the measures which are included in the Committee of Ministers’ Recommendation on gender mainstreaming in education. Strasbourg: Council of Europe. Disponível em goo.gl/KgnF4w.

[9] Bian, L., Leslie, S. J., & Cimpian, A. (2017). Gender stereotypes about intellectual ability emerge early and influence children’s interests. Science, 355(6323), 389-391. doi: 10.1126/science.aah6524.

[10] Buhs, E. S., Ladd, G. W., & Herald, S. L. (2006). Peer exclusion and victimization: Processes that mediate the relation between peer group rejection and children’s classroom engagement and achievement? Journal of Educational Psychology, 98(1), 1–13. doi:  org/10.1037/0022-0663.98.1.1.

[11] Spinner, L., Cameron, L., Calogero, R. (2018). Peer toy play as a gateway to children’s gender flexibility: The effect of (counter)stereotypic portrayals of peers in children’s magazines. Sex Roles, 79, 314–328. doi: https://doi.org/10.1007/s11199-017-0883-3.

[12] Chambers, N., Kashefpakdel, E., Rehill, J., & Percy, C. (2018). Drawing the future: exploring the career aspirations of primary school children from around the world. Londres: Education and Employers. Disponível em https://www.educationandemployers.org/drawing-the-future/.

As meninas praticam karaté… e os meninos ballet

Nadine Correia

Investigadora no Iscte – Instituto Universitário de Lisboa. Licenciada e doutorada em Psicologia, com mestrado em Política Social. Tem como principais interesses de investigação o direito das crianças à participação, a qualidade dos contextos de educação de infância, e o desenvolvimento sociocognitivo das crianças.

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