“…a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão”

(in Preâmbulo da Convenção sobre os direitos da criança)

Todas as crianças têm direito a crescer numa família, que responda às suas necessidades físicas, cognitivas e psicossociais; direito a crescer num ambiente protetor, responsivo, capaz de promover todo o seu potencial. No entanto, estima-se que aproximadamente 8 milhões de crianças estejam a viver em instituições em todo o mundo [1].

Nos últimos 20 anos, assistiu-se a um fortalecimento do movimento a favor da desinstitucionalização na Europa. A desinstitucionalização corresponde à reforma nos cuidados alternativos para crianças e jovens em perigo, visando, entre outros aspetos, diminuir a dependência do sistema de promoção e proteção no acolhimento residencial, enquanto se fortalece o acolhimento familiar [2].

O que é o acolhimento familiar?

O acolhimento familiar consiste numa medida de colocação para crianças e jovens cujas famílias, por motivos diversos, se revelaram incapazes de lhes providenciar cuidados adequados e promotores de um desenvolvimento integral. Existem diferentes formatos de acolhimento familiar no mundo. Em Portugal, atualmente, o acolhimento familiar consiste na atribuição da confiança da criança a uma pessoa singular ou a uma família,habilitadas para o efeito e sem relação de parentesco com a criança ou o jovem, tendo lugar quando seja previsível a sua posterior integração numa solução permanente (por exemplo, reintegração da criança ou jovem na família de origem, adoção)ou a sua preparação para a autonomia de vida. De acordo com a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, o acolhimento familiar deve ser a medida de acolhimento temporária a privilegiar, em especial relativamente a crianças até aos 6 anos de idade, visando proporcionar a sua integração em meio familiar e a prestação de cuidados adequados às suas necessidades, à promoção do seu bem-estar e à recuperação desenvolvimental.

O acolhimento familiar em Portugal

Em 2021, 6.369 crianças e jovens encontravam-se acolhidas em Portugal, estando a grande maioria (84.1%) a viver em acolhimento residencial generalista [3]. Apesar dos múltiplos apelos europeus em prol do acolhimento familiar [5], apenas 224 (3.5%) crianças encontravam-se em acolhimento familiar, em Portugal, naquele ano. Entre essas crianças, cerca de 70% tinham mais de 6 anos de idade [2].

O acolhimento familiar continua, assim, a ter uma menor expressão do que o acolhimento residencial, no nosso país. No entanto, importa esclarecer que 2021 registou o maior crescimento do acolhimento familiar dos últimos 15 anos em Portugal, sobretudo na faixa etária dos 0 aos 5 anos. Este cenário reflete a mudança de paradigma que se assiste em Portugal e que é consequência das alterações legislativas introduzidas no país em 2015, que vieram privilegiar o acolhimento familiar enquanto medida situada no continuum de cuidados alternativos para crianças e jovens em perigo.

Acolhimento familiar e os contextos de educação de infância

Os resultados acima mencionados alertam igualmente para a provável expansão do acolhimento familiar em Portugal nos próximos anos e, por conseguinte, para a necessidade de as entidades com competência em matéria de infância e juventude refletirem acerca do seu papel no suporte à criança em acolhimento familiar e às famílias de acolhimento. Entre essas entidades, destaca-se a escola, pela sua posição privilegiada no contacto com a criança e a família, e em particular os contextos de educação de infância, visto o acolhimento familiar ser hoje um forte candidato a constituir-se como a principal medida de colocação para crianças entre os 0 e os 6 anos, no nosso país.

Em 2021, cerca de 71% das crianças em acolhimento familiar no nosso país, com idades compreendidas entre os 0 e os 5 anos, encontravam-se integradas em creche ou jardim de infância.  O motivo mais frequente para o acolhimento destas crianças, nesse ano, foi a negligência, registando-se outras experiências adversas como, por exemplo, a exposição à violência doméstica, o abandono e o abuso físico na família de origem [3]. Importa sublinhar que a colocação da criança em acolhimento familiar pode constitui-se, ela própria, como mais um evento potencialmente traumático, por implicar separação ou perda da família de origem e de outras relações significativas (por exemplo, família alargada, pares). A isto, acrescentam-se as mudanças inesperadas entre contextos educativos e a consequente necessidade de estabelecimento de novas relações com outros/as educadores/as e pares. Torna-se, assim, premente fortalecer os mecanismos de comunicação entre a educação de infância e o sistema de promoção e proteção de criança e jovens em perigo, bem como providenciar aos/às educadores/as acesso a formação especializada e a intervenções baseadas no trauma, para melhor apoiarem as crianças na sua integração e as famílias de acolhimento no exercício da sua parentalidade.

Porquê investir na desinstitucionalização?

A expansão do acolhimento familiar em Portugal poderá trazer importantes benefícios para o sistema de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo. De seguida, elencamos três contributos situados em diferentes níveis: criança, família e comunidade.

1) Criança: o acolhimento familiar é uma medida globalmente mais protetora do desenvolvimento da criança do que o acolhimento residencial

O suporte ao acolhimento familiar, que se regista recentemente no país, tem sido informado por resultados da investigação científica, que há anos documentam os efeitos negativos de características do contexto institucional (por exemplo, os rácios cuidador-crianças inadequados) em múltiplos domínios do desenvolvimento da criança, sobretudo em bebés e crianças pequenas. Este suporte tem sido ainda informado pela investigação sobre a capacidade de recuperação destas crianças após a sua integração num ambiente familiar de qualidade, como, por exemplo, numa família de acolhimento [4].

2) Família: o acolhimento familiar pode apoiar as famílias e facilitar a reunificação

O contacto entre a família de acolhimento e a família de origem, que o acolhimento familiar exige, constitui-se como um dos elementos mais desafiantes da intervenção no acolhimento familiar. O contacto entre as duas famílias pode, no entanto, atuar como uma oportunidade tanto para a família de acolhimento como para a família de origem. Por um lado, os conhecimentos que a família de origem possui sobre a criança (por exemplo, interesses, medos) podem auxiliar a família de acolhimento a responder de forma mais responsiva à criança e a apoiá-la nas transições. Por outro lado, a exposição a outras formas de exercer a parentalidade e a exposição a conhecimentos sobre o desenvolvimento e sobre os cuidados a prestar à criança, partilhados pela família de acolhimento, pode enriquecer a parentalidade da família de origem [5].

3) Comunidade: O acolhimento familiar pode aproximar o sistema de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo da comunidade.

O acolhimento familiar pode aproximar o sistema da comunidade, porque a resposta de acolhimento familiar está na comunidade – isto é, as famílias de acolhimento estão na comunidade. O acolhimento familiar obriga a esforços para que o sistema de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo chegue à comunidade, informando-a sobre o sistema e capacitando-a. Investigação sobre a intenção de ser família de acolhimento em Portugal, incluindo da nossa equipa, tem alertado para a falta de conhecimento generalizado na comunidade sobre o sistema, e muito particularmente sobre o acolhimento familiar [6].

A desinstitucionalização ocorre por etapas, e não é nem pode ser imediata. É de esperar, se formos bem-sucedidos na expansão do acolhimento familiar no país, que daqui a poucos anos se assista a um aumento do número de crianças até aos 6 anos de idade em acolhimento familiar. Apesar dos seus potenciais benefícios, o acolhimento familiar não é ausente de desafios. Para ser de qualidade, o acolhimento familiar precisa de ser permanentemente nutrido e, para isso, necessitará de todos/as nós.  

Para saber um pouco mais…

Tem intenção de ser família de acolhimento? Conhece alguém que tem intenção de ser família de acolhimento? Ou tem simplesmente especial interesse pelo tema? Então, os sites que se seguem são para si: visite, explore, partilhe!

Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e acolhimento familiar

Instituto de Segurança Social e acolhimento familiar

Referências

[1] Van IJzendoorn, M. H., Bakermans-Kranenburg, M. J., Duschinsky, R., Fox, N. A., Goldman, P. S., Gunnar, M. R. … Sonuga-Barke, E. J. S. (2020). Institutionalisation and deinstitutionalisation of children 1: A systematic and integrative review of evidence regarding effects on development. The Lancet: Psychiatry, 7, 703-720.

[2] United Nations General Assembly (2010). United Nations Guidelines for the Alternative Care of Children. https://resourcecentre.savethechildren.net/pdf/5416.pdf/

[3] Instituto Segurança Social, Instituto Público (2021). CASA 2020. Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens. Lisboa, Portugal: ISS, IP.

[4] Zeanah, C. H., Humphreys, K. L., Fox, N. A., & Nelson, C. A. (2017). Alternatives for abandoned children: Insights from the Bucharest Early Intervention Project. Current Opinion in Psychology, 15, 182-188

[5] Serres-Lafontaine, A., & Poitras, K. (2023). Parenting during a child’s placement: A systematic perspective on parental commitment. Family Relations, 1-5.

[6] Pereira, L. (2021). Motivações e perceções acerca do acolhimento familiar em Portugal: Estudo das propriedades psicométricas de dois questionários. Dissertação de Mestrado, Iscte-IUL.

Acolhimento familiar de crianças e jovens em perigo: O papel dos contextos de educação de infância

Joana Baptista

Professora no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. É Licenciada e Doutorada em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Os seus principais interesses de investigação centram-se nos efeitos das experiências precoces, como a qualidade das interações, no desenvolvimento socioemocional e cognitivo de bebés e crianças.

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