O que é o abuso sexual de crianças?
Os dados estatísticos disponíveis em Portugal têm sido consistentes ao longo dos últimos anos e indicam que a faixa etária das crianças com maior incidência de abuso sexual é a dos 8 aos 13 anos de idade, seguindo-se a dos 4 aos 7 anos de idade. Os/as agressores/as são, na sua maioria, pessoas próximas e com uma relação de familiaridade e confiança com a criança, sendo menos expressivas as situações em que o/a agressor/a é desconhecido/a ou presta assistência formal à criança[1]. Sabemos ainda que a revelação é um processo, e não um evento, que ocorre muito frequentemente no contexto educativo, o que reforça a necessidade de abordar este tema junto dos profissionais que trabalham com crianças e, em particular, com crianças mais novas.
O abuso sexual de crianças diz respeito ao envolvimento de uma criança numa atividade sexual que não compreende totalmente e para a qual é incapaz de dar o seu consentimento informado, em razão da idade e da maturidade[2]. Surge, assim, no contexto de uma relação de assimetria de poder, de conhecimentos ou de responsabilidade, sendo que a vítima é utilizada pelo/a agressor/a para se estimular sexualmente ou para estimular sexualmente uma terceira pessoa[3, 4]. Pode incluir atos sexuais sem contacto físico (e.g., exibicionismo, importunação sexual através de conversas pornográficas) ou com contacto físico (e.g., carícias, penetração vaginal e/ou anal)[5, 6]. Na legislação portuguesa, os crimes sexuais estão tipificados como crimes contra a liberdade sexual (artigos 163.º a 170.º do Código Penal [CP]) e crimes contra a autodeterminação sexual (artigos 171.º a 178.º do CP) [7].
Os/as agressores/as podem recorrer a uma diversidade de estratégias, desde a sedução e a manipulação, até à oferta de recompensas, coerção ou ameaças, sendo o processo de «grooming» o «modus operandi» mais frequente[8]. O processo de «grooming» é um processo de sedução gradual que envolve várias fases, nomeadamente: a) identificar a vítima que se constitui como alvo preferencial; b) aceder à criança e ganhar a sua confiança, inserindo-se nos seus contextos de vida; c) estabelecer uma relação privilegiada e empática, procurando satisfazer as necessidades da criança; d) isolar a criança; e) garantir o segredo, podendo recorrer a recompensas, a ameaças ou a outras estratégias; f) envolver a criança em atividades sexuais progressivamente mais intrusivas, dessensibilizando-a face ao toque, e g) controlar a relação, de modo a garantir a manutenção da relação[9].
Qual é o impacto do abuso sexual?
O abuso sexual de crianças é concetualizado como uma experiência traumática, observando-se frequentemente um impacto negativo, a curto, médio ou longo prazo, quer nas vítimas, quer na sua família e comunidade[10]. As vítimas de abuso sexual são, no entanto, um grupo muito heterogéneo e podem variar entre vítimas assintomáticas (estima-se que possam variar entre 10% e 53%)[11] e outras que evidenciam diferentes tipos de sequelas, de severidade variável. Estas sequelas podem manifestar-se durante curtos períodos de tempo e resolver-se sem necessidade de intervenção ou, pelo contrário, persistir durante a adolescência e a fase de vida adulta. Assim, podem observar-se efeitos físicos, psicológicos ou comportamentais[12], com alguns padrões específicos em função das diferentes etapas do desenvolvimento. Concretamente em crianças de idade pré-escolar, são mais frequentes as alterações nos padrões alimentares (e.g., diminuição do apetite) e de sono (e.g., pesadelos, terrores noturnos), a par de alterações emocionais (e.g., ansiedade, medo, tristeza). Os comportamentos regressivos (e.g., perda de controlo dos esfíncteres, diminuição da autonomia) e sexualizados são também frequentes nesta fase do desenvolvimento. A respeito destes últimos, a criança pode apresentar, por exemplo, comportamentos masturbatórios com elevada frequência ou intensidade ou, ainda, simular interações sexuais nas suas atividades lúdicas ou na relação com os pares[10].
A criança pode, assim, evidenciar uma grande diversidade de alterações que não são, no entanto, específicas e exclusivas de uma situação de abuso sexual. Quer isto dizer que, com exceção de determinadas alterações ou sequelas físicas, todos os outros sinais e sintomas devem ser encarados como sinais de alerta que justificam um olhar mais atento e, eventualmente, um encaminhamento para as entidades competentes de intervenção nesta matéria (serviços de saúde e Polícia Judiciária), mas não constituem, per si, prova da existência de uma situação de abuso sexual.
O que fazer no contexto de Jardim de Infância para contribuir para a prevenção do abuso sexual de crianças?
A prevenção primária do abuso sexual implica o desenvolvimento de ações que contribuam para minimizar os fatores de risco e potenciar os fatores de proteção[13, 14]. Estas ações devem ser desenhadas e desenvolvidas numa perspetiva sistémica envolvendo, não apenas as crianças, mas também os adultos e toda a comunidade, procurando promover ambientes seguros e comportamentos saudáveis[5, 15]. Neste contexto, os adultos devem conhecer e transmitir às crianças os chamados 4 R’s da prevenção do abuso sexual[16, 17]:
- Regras (e.g., sobre o que é correto ou incorreto numa relação interpessoal);
- «Read» (saber ler os diversos sinais que a criança pode dar);
- Respeito (nas relações vs comportamentos abusivos); e
- Responsabilidade (e.g., garantir a proteção das crianças).
Os programas de prevenção do abuso sexual que se mostram mais eficazes são aqueles que procuram, não apenas transmitir conhecimentos, mas também aprender a identificar possíveis situações de risco e a saber como lidar com as mesmas (desenvolvendo competências de «coping» adequadas) [18, 19]. Os programas mais eficazes são, então, aqueles que se desenvolvem ao longo do tempo (começando na educação pré-escolar), com múltiplas sessões, dinamizadas por um adulto de referência (e.g., Educador/a de Infância) e com recurso a estratégias ativas, como a modelagem, o desempenho de papeis e as discussões em grupo[20]. Os fantoches e os materiais que são depois levados para casa para serem discutidos com os pais/cuidadores são também especialmente importantes[5, 21].
Relativamente aos conteúdos abordados, estes incluem, de uma forma geral, os seguintes temas[5, 21, 22]:
- corpo (aprender a conhecer o corpo e o conceito de partes privadas);
- toques (distinguir bons toques e maus toques);
- emoções (saber distinguir, identificar e expressar as diferentes emoções, associando-as às diversas situações);
- segredos (aprender a distinguir os bons segredos, que podem ser guardados, dos maus segredos, que devem ser revelados);
- dizer sim e dizer não (saber em que situações deve dizer sim ou não), e
- pedir ajuda (identificar possíveis situações de risco e saber como e a quem pedir ajuda, numa perspetiva de criação de um círculo de segurança).
Com crianças mais velhas, também o tema da Internet deve ser abordado, ajudando as crianças a navegar de uma forma segura.
Picos e Avelã à descoberta da floresta do tesouro!
Os materiais “Picos e Avelã à descoberta da floresta do tesouro”[23] foram desenvolvidos para crianças dos 3 aos 6 anos de idade e pensados para serem utilizados em contexto de Jardim de Infância. A história gira em redor de duas personagens principais, a ouriço Picos e o esquilo Avelã que, desafiados pelo Grande Castanheiro da floresta, partem em grandes aventuras com os outros animais. De uma forma lúdica e descontraída, sem qualquer linguagem sexualizada, as crianças aprendem e refletem sobre os temas acima referidos. Para além do livro que conta a história, são ainda sugeridas numerosas atividades, com diferentes graus de dificuldade, bem como atividades de envolvimento parental potenciando, deste modo, a continuidade do processo de aprendizagem e o envolvimento ativo da família. Igualmente, são também disponibilizados materiais diversos (e.g., puzzles do corpo humano, cartões de segredos, bússola das emoções) que ajudam a motivar as crianças e a concretizar as suas aprendizagens.
Considerações finais
O abuso sexual é uma problemática com elevada prevalência e impacto negativo a curto, médio e longo prazo, o que justifica uma abordagem preventiva centrada no desenvolvimento de ambientes saudáveis e de comportamentos seguros. O Jardim de Infância é, por excelência, um contexto de confiança e de proximidade onde é possível abordar este tema de uma forma lúdica e descontraída, ajudando as crianças a aumentar os seus conhecimentos e a promover competências de identificação e sinalização de eventuais situações abusivas.
Referências
[1] Relatório anual de segurança interna [RASI] (2020). Retirado de https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=%3d%3dBQAAAB%2bLCAAAAAAABAAzNDQ1NAUABR26oAUAAAA%3d
[2] World Health Organization (2006). Preventing child maltreatment: A guide to taking action and generating evidence [PDF]. Retirado de https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/43499/9241594365_eng.pdf;jsessionid=86A7A06AAF4B056D1585DCE3944C311D?sequence=1
[3] Finkelhor, D. & Baron, L. (1986). Risk factors for child sexual abuse. Journal of Interpersonal Violence, 1(1), 43-71. DOI: 10.1177/088626086001001004
[4] Miller, K., Dove, M., & Miller, S. (2007). A counselor’s guide to child sexual abuse. Prevention, reporting and treatment strategies. Paper based on a program presented at the Association for Counselor Education and Supervision Conference, Columbus, Ohio. Retirado de https://www.counseling.org/resources/library/vistas/2009-v-online/miller-dove-miller.pdf
[5] Sánchez, F. (2014). Los abusos sexuales a menores y otras formas de maltrato sexual. Madrid: Editorial Sintesis.
[6] Faller, K. (1993). Child sexual abuse: Interventions and treatments issues. USA: National Center on Child Abuse and Neglect.
[7] Código Penal [CP], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, na redação atualizada pela Lei n.º 58/2020, de 31 de agosto. Retirado de http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=109&tabela=leis
[8] Marques, C., Aguiar, C., & Agulhas, R. (2019). Modus Operandi dos abusadores sexuais de crianças. In M. Calheiros, E. Magalhães, & L. Monteiro (Eds.), Crianças em risco e em perigo. (volume 5, pp. 91-117). Lisboa: Edições Sílabo.
[9] The National Center for Victims of Crime (2012). Grooming dynamic. Retirado de https://victimsofcrime.org/grooming-dynamic/
[10] Gilgun, J. (2009). Child sexual abuse: Assessment, intervention & prevention. Center for Advanced Studies in Child Welfare. Retirado de https://cascw.umn.edu/wp-content/uploads/2013/12/ChildSexualAbuseSubSum.pdf
[11] Domhardt, M., Munzer, A., Fegert, J., & Goldback, L. (2015). Resilience in survivors of child sexual abuse: A systematic review of the literature. Trauma, Violence, Abuse, 16(4), 476-493. Retirado de https://doi.org/10.1177/1524838014557288
[12] Faller, K. (2017). Interventions for physically and sexually abused children. Enciclopedia of Social Work. Retirado de https://doi.org/10.1093/acrefore/9780199975839.013.1224
[13] Brown, J., & Saied-Tessier, A. (2015). Preventing child sexual abuse: Towards a national strategy for England [PDF]. Retirado de https://www.brightonandhovelscb.org.uk/wp-content/uploads/preventing-child-sexual-abuse-towards-a-national-strategy.pdf
[14] Masten, A., & Wright, M. (1998). Cumulative risk and protection models of child maltreatment. Journal of Aggression, Maltreatment & Trauma, 2, 7-30. DOI: 10.1300/J146v02n01_02
[15] Centers for Disease Control and Prevention. Risk and protective factors. Retirado de https://www.cdc.gov/violenceprevention/childabuseandneglect/riskprotectivefactors.html
[16] Radford, L., Allnock, D., & Hynes, P. (2015). Promissing programmes to prevent and respond to child sexual abuse exploitation [PDF]. Retirado de https://www.unicef.org/media/66741/file/Promising-programme-responses.pdf
[17] Walsh, K., Zwi, K., Woolfenden, S., & Shlonsky, A. (2015). School based education programmes for the prevention of child sexual abuse. Evidence-Based Child Health: A Cochrane Review Journal, 4. DOI: 10.1002/14651858.CD004380.pub3
[18] Topping, K., & Barron, I. (2009). School-based child sexual abuse prevention programs: A review of effectiveness. Review of Educational Research, 79(1), 431–463. DOI: 10.3102/0034654308325582
[19] Del Campo, A. & Fávero, M. (2020). Effectiveness of programs for the prevention of child sexual abuse. European Psychologist, 25(1), 1-15. DOI: 10.1027/1016-9040/a000379
[20] Zeuthen, K., & Hagelskjær, M. (2013). Prevention of child sexual abuse: Analysis and discussion of the field. Journal of Child Sexual Abuse, 22, 742-760. DOI: 10.1080/10538712.2013.811136
[21] Alexandre, J., Agulhas, R., Carvalho, H., & Lopes, C. (2021). Aventuras do Búzio e da Coral: Benefícios do jogo de prevenção universal do abuso sexual para crianças em idade escolar. Análise Psicológica, 1, 53-64. DOI:10.14417/ap.1601
[22] Committee for Children (2011). Talking about touching – A personal safety curriculum preschool/kindergarten (Ages 4-6) [PDF]. Retirado de https://www.cfchildren.org/wp-content/uploads/resources/previous-progams/talking-about-touching/tatPreKTeachers.pdf
[23] Alexandre, J., Agulhas, R., & Lopes, C. (2017). Picos e Avelã à descoberta da floresta do tesouro! Lisboa: Edições Sílabo.
Uma das áreas fundamentais da psicologia clínica é o bem estar-psicológico das crianças, sendo importante investir na prevenção primária do abuso sexual de crianças.
Para que esta prevenção seja bem sucedida, é essencial uma Intervenção Precoce (IP) centrada na família, valorizando o trabalho colaborativo e em equipa, sempre que possível em ambientes de aprendizagem naturais e inclusivos.
A escolha do artigo deve-se o facto de ser um tema muito atual e sensível, visto que em 2021 a percentagem de crimes sexuais em crianças foi de 5,5% (APAV, 2021).
A prevenção primária é fulcral no combate do abuso sexual infantil, utilizando-se, assim, diferentes estratégias de atuação nesta área (Ewing, 2006; Jaffe et al., 2010).
Ainda que não exista uma definição universal do conceito de abuso sexual infantil, este relaciona-se com o facto de a criança se envolver numa prática sexual que não consegue compreender na totalidade, uma vez que não tem idade nem maturidade para conseguir dar o seu consentimento (Butchart et al., 2006; WHO, 2006).
O abuso e maus-tratos das crianças podem ter um grande impacto, nomeadamente quando ocorrem nos seus primeiros anos de vida. Pela forma como acontecem, podem privar a criança da sua liberdade e dos seus direitos, podendo ainda afetar o seu desenvolvimento típico, tanto a nível físico, como psicológico, social e educativo, bem como a sua saúde e dignidade.
Existem, ainda, sinais dados pela criança que podem indicar a presença de abuso sexual. Estes sinais podem ser físicos, comportamentais, ou até podem ser indicadores psicológicos. Habitualmente, o abuso sexual é identificado com maior frequência pelos sinais comportamentais, sendo que os sinais físicos são identificados com menor frequência.
A ação do psicólogo na prevenção do abuso sexual infantil passa, assim, por encontrar estratégias, nomeadamente através do brincar, em parceria com pessoas significativas para a criança, sendo que um dos projetos a destacar a partir da leitura do artigo é o “Picos e avelã à descoberta da floresta do tesouro!”. É essencial que as crianças vão adquirindo competências necessárias para a tomada de decisão, assertividade e confiança. É também importante dar a conhecer aos cuidadores a melhor maneira de ensinar às crianças os 4 R’s da prevenção deste abuso, que consistem em Regras, “Read”, Respeito, Responsabilidade.
O papel do psicólogo clínico tem, sobretudo, expressão numa intervenção secundária, uma vez que, por norma, intervém após já ter ocorrido um abuso, apoiando a família e a criança numa tentativa de minimizar as consequências psicológicas. Contudo, seria importante existir uma articulação próxima entre o trabalho do Psicólogo Clínico e do Psicólogo Educacional e Equipa Educativa em todas as escolas para que assim, colaborativamente, a ação do Psicólogo Clínico pudesse acontecer o mais cedo possível. É também importante que o Psicólogo Clínico, sempre que recebe uma criança vitima de abuso sexual, procure compreender se na sua escola existe um plano de prevenção e, caso não exista, sugerir e colaborar na sua implementação.
Maria Inês Batista, Joana Fernandes, Sónia Amado, Catarina Huerta com Ana Teresa Brito. Maio de 2022, ISPA – Instituto Universitário, Mestrado Integrado em Psicologia Clínica, Unidade Curricular de Intervenção Precoce.