Se as refeições em creche podem ser oportunidades únicas para estabelecer interações de elevada qualidade, elas podem constituir também um desafio, como vivenciou a educadora Mariana.
A educadora Mariana andava preocupada por causa do almoço na creche onde trabalhava. As crianças almoçavam todas ao mesmo tempo, sendo o momento mais turbulento do dia. Então, com a auxiliar da sua sala e outra auxiliar que as apoiava à refeição, decidiram começar o almoço meia hora mais cedo. Além disso, organizaram as crianças em três grupos de cinco e passaram a sentar-se com elas à mesa. As interações entre as profissionais e as crianças melhoraram substancialmente.
(Descrição baseada num caso real)
É importante promover interações positivas nos momentos de refeição. Porquê?
Vários estudos têm indicado que a qualidade das interações adulto-criança nas creches e nos jardins de infância, nos diversos momentos do dia, é importante para o desenvolvimento e bem-estar das crianças [1, 2]. Particularmente na creche, as rotinas relacionadas com os cuidados pessoais, como a alimentação, são contextos privilegiados de aprendizagem e oferecem momentos ímpares para estabelecer interações individualizadas, calorosas e significativas [3, 4]. São, também, momentos interessantes para promover práticas que considerem a diversidade cultural das crianças/famílias [5].
À mesa não se fala?!
A expressão “à mesa não se fala” é muito usada em Portugal. Contudo, as refeições são um excelente contexto para conversar, para construir significados partilhados e para adotar práticas que apoiam o desenvolvimento da linguagem [6, 7]. Além disso, há estudos que concluíram que um clima emocional positivo à refeição contribui para adquirir práticas alimentares mais saudáveis [4]. Mas…
Refeições em creche: os desafios
…as refeições são momentos muito desafiantes nas creches (e nas famílias também!). Alguns estudos documentam dificuldades, revelando que as interações entre adultos e crianças à refeição tendem a ser menos frequentes, menos estimulantes, menos sensíveis e com menor resposta às iniciativas das crianças [8, 9]. Em comparação com o que acontece no jogo livre e nas atividades estruturadas, as interações à refeição (em creche e também em jardim de infância) tendem a ser menos alegres, com menos “faz-de-conta”, a proporcionar menos oportunidades de aprendizagem e a estar mais centradas na gestão dos comportamentos [8, 10]. A investigação sugere ainda que as interações verbais durante as refeições tendem a ser mais breves, simples, instrumentais (“come!”, “já acabaste?”) e unidirecionais (do/a profissional para a criança) [6, 7].
Agarramos o desafio?!
Estes resultados indicam que as refeições são momentos muito exigentes, mas também nos incitam a aproveitá-las para estabelecer interações calorosas, sensíveis e cognitivamente estimulantes. Algumas práticas são mais difíceis de alcançar quando estão presentes vários constrangimentos na instituição (e.g., recursos físicos, materiais e humanos escassos, com necessidade de partilhar espaços, com inflexibilidade nos horários, etc.), mas parece-me que algumas medidas podem estar ao alcance das/dos profissionais.
Como podemos organizar o grupo, o espaço e o horário?
- Apesar de poder ser divertido jantar num restaurante grande, com música alta, não me parece muito atrativo comer nesse ambiente todos os dias. Nas creches, é essencial que a refeição decorra num ambiente sossegado, o que pode implicar ajustar os horários para que as crianças das várias salas não passem todo o tempo de refeição, em simultâneo, no refeitório [11]. Há profissionais que optam mesmo por dar o almoço/lanche na sala, para evitar a confusão do refeitório.
- Os bebés e as crianças, particularmente as mais novas ou com maior necessidade de apoios, têm dificuldade em lidar com períodos longos de espera. Com fome e com sono podem ficar… “impossíveis”! Ao organizar o horário, é importante perceber como se podem satisfazer as necessidades de cada bebé/criança, sem longos períodos de espera [11].
- A refeição demora mesmo muito, muito tempo! Podemos sentir vontade de acelerar, porque há muitas outras tarefas ou o refeitório tem de ser limpo ou… Mas seria bom não apressar, pois na creche as rotinas de cuidados e a educação estão integradas [12]. Como as refeições são momentos cruciais para aprendizagens significativas, para construir relações seguras, para promover a autonomia e o desenvolvimento social, é tempo que se ganha!
- Como eu dizia, às vezes sabe bem ir a um restaurante movimentado, mas é revigorante almoçar num sítio sossegado, com um grupo pequeno de amigos/as, com quem podemos conversar! Na creche, também podemos criar um ambiente intimista, por exemplo:
- alimentando os bebés em cadeiras individuais e organizando pequenos grupos, no caso das crianças mais autónomas [5, 11]. Grupos pequenos facilitam interações positivas e um apoio mais próximo a todas as crianças e, em particular, a crianças com necessidade de apoios mais específicos;
- posicionando-se de modo a facilitar interações individualizadas. As interações tendem a ser mais positivas e as conversas mais ricas quando os/as profissionais se sentam com as crianças durante a refeição [8, 13].
No caso da educadora Mariana, resultou bem sentar-se com as crianças. O que ela pretendia era criar um ambiente de tipo familiar à refeição, almoçando ao mesmo tempo que as crianças, mas não foi possível. Quando não há essa possibilidade, aproximar-se das crianças, inclinar-se, tocar, olhar nos olhos, sorrir, tentar que todas as crianças estejam perto de algum/a profissional têm surgido como boas estratégias [5, 11, 14].
Ficam nesta mensagem alguns resultados da investigação e algumas sugestões, que nos parecem favorecer todas as crianças do grupo. Partilhe connosco a sua experiência: quais os principais desafios nos momentos da refeição? Como lhes tem tentado responder?
Sílvia Barros, Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto
Referências
[1] Mortensen, J. A., & Barnett, M. A. (2015). Teacher–child interactions in infant/toddler child care and socioemotional development. Early Education and Development, 26(2), 209–229. doi:10.1080/10409289.2015.985878
[2] Cadima, J., Ferreira, T., Guedes, C., Vieira, J., Leal, T., & Matos, P. M. (2016). Risco e regulação emocional em idade pré-escolar: A qualidade das interações dos educadores de infância como potencial moderador. Análise Psicológica, 3 (XXXIV), 235-248. doi:10.14417/ap.1079
[3] Mita, S. C., Gray, S. A., & Goodell, L. S. (2015). An explanatory framework of teachers’ perceptions of a positive mealtime environment in a preschool setting. Appetite, 90, 37–44. http://dx.doi.org/10.1016/j.appet.2015.02.031
[4] Swindle, T. M., Patterson, Z., & Boden, C. J. (2017). A qualitative application of the Belsky model to explore early care and education teachers’ mealtime history, beliefs, and interactions. Journal of Nutrition Education and Behavior, 49 (7), 567-578. http://dx.doi.org/10.1016/j.jneb.2017.04.025
[5] Zero to Three (2009). Developmentally appropriate practice in the infant and toddler years’ ages 0-3. Examples to consider. In C. Copple, & S. Bredekamp (Eds.), Developmentally appropriate practice in Early Childhood Programs. Serving children from birth through age 8 (3rd. Ed.). Washington, D. C.: NAEYC.
[6] Degotardi, S. (2010). High-quality interactions with infants: relationships with early-childhood practitioners’ interpretations and qualification levels in play and routine contexts. International Journal of Early Years Education, 18(1), 27-41. doi: 10.1080/09669761003661253
[7] Hallam, R. A., Fouts, H. N., Bargreen, K. N., & Hallam, K. P. (2016). Teacher–child interactions during mealtimes: observations of toddlers in high subsidy child care settings. Early Childhood Education Journal, 44, 51–59.
[8] Cote, L. R. (2001). Language opportunities during mealtimes in preschool classrooms. In D. K. Dickinson & P. O. Tabors (Eds.), Beginning literacy with language (pp. 205-221). Baltimore: Paul Brooks Publishing Company.
[9] Turnbull, K.P., Anthony, A. B., Justice, L. M., & Bowles, R. (2009). Preschoolers’ exposure to language stimulation in classrooms serving at-risk children: The contribution of group size and activity context. Early Education & Development, 20, 53-79. doi:0.1080/10409280802206601
[10] Gest, D. S., Holland-Coviello, R., Welsh, J. A., Eicher-Catt, D. L., & Gill, S. (2006). Language development subcontexts in Head Start classrooms: Distinctive patterns of teacher talk during free play, mealtime, and book reading. Early Education and Development, 17(2), 293-315. doi: 10.1207/s15566935eed1702_5
[11] Cryer, D., Harms, T., & Riley, C. (2004). All about the ITERS-R. Lewisville: Pact House Publishing, Kaplan Early Learning Company.
[12] Araújo, S. B. (2013). Dimensões da pedagogia em creche: Princípios e práticas ancorados em perspetivas pedagógicas de natureza participativa. In J. Oliveira-Formosinho & S. B. Araújo (Eds.)., Educação em creche: Participação e diversidade (29-74). Porto: Porto Editora.
[13] Degotardi, S., Torr, J., & Nguyen, A. (2016). Infant-toddler educators’ language support practices during snack-time. Australasian Journal of Early Childhood, 41(4), 52-62.
[14] Chen, J. J., & Kim, S. G. (2014). The quality of teachers’ interactive conversations with preschool children from low-income families during small-group and large-group activities. Early Years, 34 (3), 271-288. doi: 10.1080/09575146.2014.912203
Gostei muito este mensajem. Na Bélgica também existe ainda a prática de no poder falar nos momentos de refeição em alguns jardimes de infância. Felizmente en otros jardins de infância los crianças comem y falam no total libertade. Obrigada pelo mensajem!
Astrid, obrigada pelo comentário e por tentar escrever em Português!
De facto, os momentos de refeição podem proporcionar conversas muito interessantes.
(Astrid, thanks for your comment and for trying to write in Portuguese!
In fact, mealtimes can provide very interesting conversations.)