“Ainda não sabemos o que a criança tem…”, dizia-me uma educadora, há algum tempo, falando das dificuldades que estava a ter com uma criança que demonstrava problemas no seu comportamento. Aquela frase deixou-me a pensar. Obter informação sobre o que a criança “tem”, isto é, tentar saber qual o seu diagnóstico, traduz uma preocupação genuína e revela cuidado em desenvolver práticas fundamentadas. Mas será que as dificuldades encontradas se devem, em primeiro lugar, a algo que a criança “tem”? Em que medida conhecer o diagnóstico é essencial para planificar intervenções, em casa, na creche ou no jardim de infância?
O que é um “Diagnóstico”?
A palavra diagnóstico pode referir-se tanto a um processo como a um produto. Enquanto processo, refere-se aos procedimentos sistemáticos através dos quais um clínico recolhe, identifica, seleciona e organiza um conjunto de sinais e sintomas, produzindo uma interpretação – uma “condição organizada”. Como produto, refere-se à designação que atribui a essa “condição organizada”, de acordo com as convenções em vigor [1].
Os diagnósticos podem ser categoriais ou dimensionais. Categoriais se existir uma descontinuidade entre os sujeitos abrangidos pelo diagnóstico e a população em geral; dimensionais se não existir essa descontinuidade. Por exemplo: a Trissomia XXI é um diagnóstico categorial, pois existe uma descontinuidade evidente, resultante da existência de três cromossomas no par 21; Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) é um diagnóstico dimensional, pois os seus sintomas também se encontram, embora em graus diferentes, na população em geral [2].
O diagnóstico é o que a criança “tem”?
Como referi acima, a atribuição de um diagnóstico depende das convenções em vigor num determinado momento. E em nenhuma condição isso é tão evidente como no Transtorno de Défice de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Sempre existiram pessoas com o tipo de funcionamento associado com esta condição, mas apenas há algumas décadas se considerou esse funcionamento como clinicamente significativo e se utilizou aquela expressão para o designar. Além disso, os critérios para diagnosticar o TDAH têm sofrido flutuações e mudanças ao longo do tempo, com consequências óbvias no número e tipo de casos diagnosticados. O mesmo acontece com muitas outras categorias diagnósticas. Assim, o diagnóstico não descreve o que a criança tem ou é, mas em que categoria os especialistas a colocam num determinado local e momento da história.
Os diagnósticos são consensuais?
A obtenção de um diagnóstico não é um processo fácil. Frequentemente, têm de ser os pais a convencer os clínicos da existência de perturbações no desenvolvimento da criança. Muitos profissionais desvalorizam as queixas, sugerindo que os pais aguardem que os filhos se desenvolvam e ultrapassem os problemas. Por exemplo, num estudo sobre o processo de diagnóstico das Perturbações do Espectro do Autismo, verificou-se que os pais aguardam 5 anos, em média, por um diagnóstico, e visitam 4 ou 5 especialistas (o número oscilou entre 1 e 29 clínicos) [3]. Portanto, o funcionamento da criança é frequentemente interpretado de forma diversa por clínicos diferentes.
Crianças com o mesmo diagnóstico apresentam o mesmo comportamento?
A investigação indica que pessoas com o mesmo diagnóstico podem ter padrões e níveis de funcionamento diferentes [4, 5]. Por exemplo, no caso das perturbações neurodesenvolvimentais, verificou-se que a informação diagnóstica não fornece uma imagem adequada do funcionamento das crianças. Frequentemente, coexistem problemas em várias áreas do desenvolvimento e, até, outras condições diagnosticadas [5]. Deste modo, conhecer o diagnóstico diz-nos pouco acerca do funcionamento da criança.
Para que serve o diagnóstico?
São normalmente apresentadas duas razões principais: aumentar o acesso a serviços e apoios financeiros e facilitar a comunicação entre profissionais [6]. No entanto, é preciso ter em mente que, em Portugal, atualmente, o diagnóstico é dispensável na obtenção dos apoios educativos, tendo sido substituído por uma avaliação do funcionamento da criança nos seus contextos de vida [7, 8]. Esta, sim, é essencial para qualquer planificação [5, 9]. Além disso, na maior parte dos casos, os métodos de ensino não são determinados pelo diagnóstico nem são diferentes dos utilizados com a maior parte das crianças [10].
E o diagnóstico pode ter riscos ou consequências negativas?
Em algumas situações o conhecimento do diagnóstico pode aparentemente proteger a criança, por exemplo, matizando a interpretação que as pessoas fazem do seu comportamento [11, 12]. No entanto, a atribuição de um diagnóstico centra-se nos aspetos em que a criança se diferencia das demais, sublinhando as suas fragilidades [6]. Nesse sentido, a investigação demonstra que a existência de um diagnóstico afeta as expectativas dos/as educadores/as, aumentando o risco de estigmatização, discriminação e exclusão [13, 14]. Estes efeitos prolongam-se ao longo do percurso escolar.
Por todas estas razões, podemos concluir que o conhecimento do diagnóstico de uma criança pode ser relevante, mas requer uma interpretação cuidadosa. É urgente deixar de se considerar o “não saber o que a criança tem” como um problema, e procurar outro tipo de informações para planificar a ação. Num próximo texto, explorarei algumas questões deixadas em aberto. Aí, irei propor um verbo alternativo para completar a pergunta “O que é que a criança___?”, mais relevante para a ação do/a educador/a.
E no seu caso? Já trabalhou com crianças com “diagnósticos”? Que uso fez dessa informação? Que verbo acha que fará sentido analisar? Partilhe connosco essa informação nos comentários.
Miguel Santos, Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto
Referências
[1] Brown, P. (1995). Naming and framing: the social construction of diagnosis and illness. Journal of Health and Social Behavior, 35(Extra Issue), 34-52. doi: 10.2307/2626956
[2] Hyman, S. E. (2010). The diagnosis of mental disorders: the problem of reification. Annual review of clinical psychology, 6, 155-179. doi: 10.1146/annurev.clinpsy.3.022806.091532
[3] Goin-Kochel, R.P., Mackintosh, V.H., & Myers, B.J. (2006). How many doctors does it take to make an autism spectrum diagnosis? Autism, 10(5), 439–451. doi: 0.1177/1362361306066601
[4] Teverovsky, E. G., Bickel, J. O., & Feldman, H. M. (2009). Functional characteristics of children diagnosed with childhood apraxia of speech. Disability and Rehabilitation, 31(2), 94-102. doi: 10.1080/09638280701795030
[5] Miller, A.R., Masse, L.C., Shen, J., Schiariti, V., & Roxborough L. (2013). Diagnostic status, functional status and complexity among Canadian children with neurodevelopmental disorders and disabilities: A population-based study. Disability & Rehabilitation, 35(6), 468-478. doi: 10.3109/09638288.2012.699580
[6] Haring, K., Lovett, D. L., Haney, K. F., Algozzine, B., Smith, D. D., & Clarke, J. (1992). Labeling preschoolers as learning disabled: A cautionary position. Topics in Early Childhood Special Education, 12(2), 151-173. doi: 10.1177/027112149201200203
[7] Decreto-lei n.º 3/2008, de 7 de janeiro
[8] Decreto-lei n.º 54/2018, de 6 de julho
[9] Pinto, A. I., Grande, C., Coelho, V., Castro, S., Granlund, M., & Björck-Åkesson, E. (2018). Beyond diagnosis: The relevance of social interactions for participation in inclusive preschool settings. Developmental neurorehabilitation, 1-10. doi: 10.1080/17518423.2018.1526225
[10] Hamre, B., Hedegaard-Sørensen, L., & Langager, S. (2018). Between psychopathology and inclusion: The challenging collaboration between educational psychologists and child psychiatrists. International Journal of Inclusive Education, 22(6), 655-670. doi: 10.1080/13603116.2017.1395088
[11] Wood, M., & Valdez-Menchaca, M. C. (1996). The effect of a diagnostic label of language delay on adults’ perceptions of preschool children. Journal of Learning Disabilities, 29(6), 582–588. doi:10.1177/002221949602900602
[12] Granlund, M. & Lillvist, A. (2015). Factors influencing participation by preschool children with mild intellectual disabilities in Sweden: With or without diagnosis. Research and Practice in Intellectual and Developmental Disabilities, 2(2), 126-135. doi: 10.1080/23297018.2015.1079729
[13] Sadler, J. (2005). Knowledge, attitudes and beliefs of the mainstream teachers of children with a preschool diagnosis of speech/language impairment. Child Language Teaching and Therapy, 21(2), 147-163. doi: 10.1191/0265659005ct286oa
[14] Algraigray, H., & Boyle, C. (2017, December). The SEN Label and its effect on Special Education. Educational and Child Psychology, 34(4).
Considero que todas as crianças têm…qualquer coisa que as define, uma vez que são todas diferentes.
Muitas das vezes, enquanto profissionais de educação, a necessidade de um diagnóstico perante algo que “achamos atípico” é no sentido de compreender o que a criança pensa, como é que ela se sente, se as minhas estratégias a apoiam e se estão adequadas às suas características e quais os técnicos que nos podem apoiar numa intervenção precoce para que todos a apoiem de forma consistente. Existem sempre riscos num diagnóstico…mas também cabe aos profissionais, pensar e agir além do que está escrito, não criando rótulos de que a criança não é capaz porque foi diagnosticado com algo…
Obrigado por partilhar o seu ponto de vista. Os aspetos que menciona são muito importantes. Penso que irei ao encontro de algumas das suas questões numa próxima publicação! Continue a visitar-nos!