No texto intitulado “O que é que a criança tem?” questionei a importância do diagnóstico para a prática diária nas creches e nos jardins de infância. No final da reflexão, deixei a promessa de propor um verbo alternativo para completar a pergunta “O que é que a criança___?”, mais relevante para a ação do/a educador/a. É esse o foco deste texto.

O que é que a criança faz?

Como procurei demonstrar no texto referido, a informação essencial para trabalhar com uma criança com perturbações no desenvolvimento não está contida num diagnóstico ou num percentil. A informação essencial está naquilo que a criança faz e no que está preparada para fazer [1]. A recolha dessa informação requer uma avaliação rigorosa, para a qual é importante a existência de uma equipa de profissionais, em colaboração com a família e os/as educadores/as.

A qualidade dos apoios prestados a crianças com perturbações no seu desenvolvimento depende da avaliação do seu funcionamento. Infelizmente, os profissionais necessários nem sempre estão disponíveis, ou o seu envolvimento é tardio. Neste texto, convido os/as educadores/as de infância a pensar nas suas práticas quando se encontram nesta situação.

Os critérios para uma avaliação de qualidade incluem aspetos, como o trabalho em equipa, a colaboração com a família, a flexibilidade nos materiais e procedimentos, a utilização de múltiplas fontes de informação, a autenticidade e a sensibilidade [2]. Estes dois últimos critérios, que constituirão o foco deste texto, são fundamentais para o/a educador/a orientar a sua atenção na compreensão do funcionamento da criança, mesmo em situações em que ainda não se dispõe da equipa de profissionais que referi.

Um olhar autêntico e sensível

Esta avaliação do desenvolvimento difere da imagem tradicional da avaliação, realizada em contextos clínicos ou laboratoriais, através de materiais que a criança não conhece, e em interação com adultos estranhos.

Obtemos uma imagem muito mais autêntica do desenvolvimento da criança quando descrevemos o seu comportamento nos locais em que se sente confortável, a realizar tarefas do seu dia a dia (nomeadamente a brincar), e enquanto interage com as pessoas que conhece bem, como os familiares, as crianças da sua sala de creche/JI, educadores/as e auxiliares.

A sensibilidade da avaliação, relevante em qualquer caso, é particularmente importante quando falamos de crianças com perturbações mais severas no seu desenvolvimento. Uma avaliação sensível é aquela que produz descrições capazes de evidenciar mesmo as mais pequenas aquisições. Isso implica o afastamento do pensamento binário não faz – faz e decompor as competências a adquirir em passos ou sequências mais informativas sobre o progresso do não faz até ao faz.

Um exemplo relativo à compreensão da linguagem

Numa abordagem binária, superficial, dir-se-ia: “a criança não compreende a linguagem”. Qual a utilidade desta afirmação para a intervenção?! Nenhuma ou escassa.

Porém, podemos decompor essa competência, como propôs Toni Linder [3], no sistema de avaliação que designou Transdisciplinary Play-Based Assessment and Intervention (TPBA/I):

Dessa forma, conseguimos obter uma imagem mais clara e justa do que a criança faz e podemos avançar para a questão seguinte:

O que é que a criança está pronta para aprender a fazer?

Recorro aqui a uma metáfora geográfica, pois considero uma intervenção como uma viagem: ao proceder a uma caracterização binária, centrada na “incompetência”, naquilo que a criança “não faz”, não é possível desenhar um mapa, pois nem temos ponto de partida, nem definimos ponto de chegada!

Com um olhar autêntico e sensível, como descrevi, é possível estabelecer com clareza o ponto de partida (por exemplo: a criança vira-se, por vezes, quando o ouve o seu nome) e começar a definir o passo seguinte (por exemplo: aumentar o número de vezes em que se vira, quando ouve o seu nome, bem como aumentar o número de palavras que chamam a sua atenção).

Reafirmo o que disse: em situações de perturbações no desenvolvimento é essencial o envolvimento de uma equipa de profissionais. Métodos como o TPBA/I, implementados em equipa, são extremamente úteis e bem recebidos por famílias e educadores/as [1], pois trazem orientações claras para o trabalho a realizar com a criança nos seus contextos naturais. Quando esses recursos não existem será sempre possível ajustar o olhar que os envolvidos têm sobre o funcionamento da criança. Com este texto e com o seu precursor, espero ter contribuído para deslocar a atenção da busca de um diagnóstico, para a observação atenta do comportamento da criança.

Referências

[1] Sanches-Ferreira M., Linder T., Lopes-dos-Santos P., Silveira-Maia M., & Alves, S. (2015). Portuguese parents’ perceptions of Transdisciplinary Play-based Assessment. Childhood Education, 91(4), 300-306. https://doi.org/10.1080/00094056.2015.1069161.

[2] Bagnato, S. J., Neisworth, J. T., & Pretti-Frontczak, K. (2010). LINKing authentic assessment and early childhood intervention: Best measures for best practices (4th ed.). Paul Brookes.

[3] Linder, T. W. (2008). Transdisciplinary Play-Based Assessment (2nd ed.). Paul H. Brooks

“O que é que a criança faz?” – A importância de uma avaliação autêntica e sensível

Miguel Santos

É professor na ESE/IPP, na área de Educação Especial e Inclusão. Tem doutoramento em Psicologia da Educação pela Universidade do Minho. Tem lecionado disciplinas sobre desenvolvimento humano típico e atípico e educação especial e inclusão. Os seus interesses profissionais centram-se na promoção da participação na vida em sociedade de todas as pessoas, independentemente das suas características, ao longo do seu ciclo de vida.

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