Saúde e doença, vista por uma criança
Uma criança saudável e uma criança doente

“Miguel, quero dizer-te que tenho muita pena que tu não tenhas vindo à escola hoje (…) disseram que podes ter gripe A, mas também pode não ser (…) não te preocupes porque eu já tive gripes e fiquei bem (…) quero dizer-te que quando vieres eu vou trazer-te gomas sem açúcar porque sei que tu não gostas de açúcar (…) fica em casa e faz tudo, toma todos os remédios e tudo, e vais ficar bom (…) tu és o melhor amigo e sempre serás (…)

Assinado Pedro (6 anos)

Este é o excerto de uma carta ditada por uma criança para ser entregue ao seu amigo, durante a epidemia da Gripe A. Fala da gravidade da doença, inclui indicações de ajuda, mas também conforta, fala de cuidados, de esperança e de amizade eterna! O QUE AS CRIANÇAS SABEM!

Vivemos um tempo que desafia a nossa capacidade de adaptação. Para além da gravidade médica, o Covid-19 ameaça a nossa estabilidade de vida e o nosso equilíbrio emocional. De repente, fomos obrigados a alterar rotinas, ficamos confinados a casa, somos bombardeados com notícias assustadoras, e tudo isto sem que se conheça, neste momento, qual o limite temporal e quais as consequências económicas e sociais depois da “alta” médica.

E as crianças? Como percebem elas o que se está a passar? Como falar com elas? O que fazer e/ou como ajudar as famílias a atuar nestes momentos?

Como percebem as crianças o que se está a passar?

As reacções das crianças aos fenómenos que experienciam são influenciadas por muitos factores:

  • a sua competência cognitiva (i.e., a forma como conseguem pensar sobre a situação)
  • as suas experiências passadas (i.e., pelo que aprenderam cognitiva e emocionalmente em situações semelhantes)
  • a qualidade das suas ligações e recursos emocionais (i.e., pela segurança das suas relações com os adultos de referência)
  • e a reacção emocional e comportamental dos adultos que as rodeiam, muito especialmente dos que considera ser a sua fonte de segurança (i.e., em primeira linha os seus pais e familiares muito presentes, e os educadores com quem estabelece também relações preferenciais).

A grande maioria dos modelos da compreensão infantil da saúde e da doença [e.g., 1-3] seguem a orientação Piagetiana [4] e apresentam o desenvolvimento  numa sequência majorante que parte da utilização de esquemas cognitivos mais básicos, pré-lógicos e menos flexíveis (nas crianças mais pequenas), para esquemas progressivamente mais complexos, lógicos e lógico-abstratos, mais integradores e flexíveis (nas crianças mais velhas e nos adolescentes).

Segundo esta abordagem, é de esperar que as crianças de idade pré-escolar mais pequenas (i.e., aproximadamente 3 a 4 anos) tenham uma capacidade muito limitada para compreender a existência de um “vírus” que se desenvolve no interior do corpo humano e pode danificar órgãos.

Para estas crianças, as doenças acontecem na superfície do corpo e são definidas em termos sensoriais (e.g., gripe é tossir). A doença transmite-se por contiguidade temporal ou espacial (e.g., fiquei doente porque era de noite; porque estava frio), muitas vezes aprendida através de verbalizações dos adultos (e.g., temos que por um casaco porque está frio e podes ficar doente), ou por causas mágicas (e.g., os maus puseram o meu irmão doente).

As crianças um pouco mais velhas (4/5 anos) incorporam a noção de germe e começam a compreender as categorias ontológicas, “o biológico” e “não biológico. Agora sim, a criança percebe a existência de “bichos tão pequeninos que nem conseguimos ver a não ver com o microscópio, mas estão lá e até nos podem estragar os dentes”. No entanto, esta compreensão é ainda muito categorial, indiscriminada e sem grande lógica.

Não conseguindo estabelecer relações lógicas que permitam antever consequências e, especialmente as mais pequeninas, não conseguindo entender a possibilidade de prevenção, é particularmente difícil para estas crianças compreender que não podem ir ao parque ou à escola e têm de ficar em casa porque podem contrair uma doença como o Covid-19.

Como podem as famílias falar com as crianças sobre o Covid-19?

Considerando o que dissemos atrás, seguem algumas dicas sobre como falar com as crianças em idade pré-escolar sobre o Covid-19:

  • Evitar que as crianças oiçam informação veiculada nos media. As crianças têm consciência do “alvoroço” geral, e do vivido em casa, em relação ao assunto e poderão estar a ouvir mesmo quando parecem estar distraídas. Ao contrário das crianças mais velhas, as mais pequenas não sabem como colocar dúvidas ou expressar preocupação em relação a um assunto específico.
  • Ter cuidado para não mostrar alarme. Nesta fase de desenvolvimento as crianças aprendem muito mais com as reacções e comportamentos dos pais (ou outros adultos) do que com as suas explicações.
  • Com as crianças mais pequenas falar em gripe ou constipação (de certo já tiveram algo parecido), descrevendo dois ou três sintomas que elas conhecem. Dizer que estão muitas pessoas com gripe e que toda a gente está a ajudar para que não fiquem mais pessoas doentes. Acrescentar que, para ajudar, o melhor a fazer é ficar em casa, lavar muito bem as mãos (ensaiar com a criança) e não ficar muito perto das pessoas que já estão doentes.
  • Com as crianças mais velhas pode-se falar do vírus, dizendo que é parecido com outros, como o da gripe, só que neste caso as pessoas têm mais sintomas e o vírus passa de pessoa para pessoa de forma muito rápida; usar, se possível, imagens simples ou desenhar com elas formas de contaminação e o que deve ser feito para que o vírus não passe de pessoa para pessoa. Exemplifique, ensine-a a lavar as mãos como se fosse um jogo.
  • Adotar um discurso claro e positivo. Nunca falar na ameaça sem realçar a resolução dessa ameaça. Dizer que, tal como eles já viveram noutras vezes, o vírus vai ser vencido pelas pessoas, pelos médicos, pelos enfermeiros e pelos medicamentos que se estão a arranjar. Quando o vírus desaparecer, poderá voltar à escola, ao parque, a casa dos avós e dos amigos. Referir ainda que pode demorar algum tempo, porque muitas pessoas têm de ficar boas e isso demora tempo.
  • Verificar se a criança compreendeu. Caso a criança demonstre preocupação, procurar simplificar ainda mais a informação que foi dita, mostrando que ela está segura ao lado da sua família. Estar atenta/o para a necessidade de repetir muitas vezes a informação.
  • Mostrar tranquilidade e falar sempre de forma positiva do que podem ir fazendo para se divertirem enquanto estão em casa trará à criança o CONFORTO, SEGURANÇA  e a ESPERANÇA de que falava o Pedro na sua carta, e tão importante nestes dias.

Referências

[1] Bibace, R., & Walsh, M. W. (1980). Development of children’s concepts of illness. Pediatrics, 66, 912–917.

[2] Perrin, E. C., & Gerrity, P. S. (1981). There’s a demon in your belly: Children’s understanding of illness. Pediatrics, 67, 841–849.

[3] Koopman, H.M., Baars, R.M., Chaplin, J., & Zwinderman, K.H. (2004). Illness through the eyes of the child: The development of children’s understanding of the causes of illness. Patient Education and Counseling, 55, 363-370

[4] Piaget., J.  & Inhelder, B., (1969). The psychology of the child. New York Basic Books.

O vírus anda aí!!! Como falar com as crianças sobre o Covid-19?

Margarida Custódio dos Santos

Professora Coordenadora da Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa e Professora Auxiliar convidada da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Doutoramento em Psicologia - Especialidade em Psicologia da Saúde.

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