Bater em adultos é considerado agressão. Bater em animais é considerado crueldade. Bater em crianças é para o seu próprio bem? Este foi o mote de uma campanha do Conselho da Europa, lançada em 2008, com o objetivo de sensibilizar para a abolição da punição corporal contra as crianças. Esta semana partilhamos consigo alguns mitos e verdades sobre a punição corporal, na expectativa de que possa, também, partilhar connosco as suas perspetivas sobre este assunto.
MITOS E FACTOS SOBRE A PUNIÇÃO CORPORAL
MITO 1: Uma palmada, de vez em quando, não faz mal a ninguém. Os meus pais também me bateram e não me fez mal nenhum. Aliás, sem isso, ter-me-ia tornado uma criança mimada e mal-educada.
FACTOS: A punição corporal é considerada uma das formas mais comuns de violência contra as crianças, em que a força física é usada com o intuito de provocar algum tipo de dor ou desconforto à criança (mas não ferimentos), e como forma de corrigir ou controlar comportamentos considerados desadequados [1]. Frequentemente, envolve algum tipo de humilhação, ameaça, ou ridicularização da criança [2]. Não são conhecidos benefícios da punição corporal [3, 4]. Pelo contrário, diversos estudos mostram que a punição corporal pode causar danos físicos e psicológicos às crianças, comprometendo o seu desenvolvimento saudável [5]. Para além disso, estas práticas tendem a perpetuar-se através de gerações [6].
PROPOSTA DE REFLEXÃO: Como poderemos substituir castigos corporais por formas mais positivas de influenciar o comportamento das crianças? Através de um ambiente sem castigos, com atenção positiva e regular, demonstrando interesse pelas perspetivas e experiências das crianças, e procurando compreender os seus pontos de vista, não lhes estaremos a dar ferramentas para que aprendam, também, a colocar-se no lugar do outro e a resolver construtivamente conflitos?
MITO 2: Há uma grande diferença entre bater numa criança e dar uma palmada para o seu próprio bem. Às vezes, uma palmada ou um pequeno puxão pelo braço, no momento certo, evitam que uma criança se magoe, ou que faça um disparate.
FACTOS: A punição corporal constitui uma violação dos direitos das crianças, independentemente da forma, intensidade ou frequência com que é aplicada [2]. Assim, quer as formas mais ligeiras, como uma palmada, quer as mais extremadas, como puxar a criança pelos cabelos, ou puni-la com recurso a objetos, são agressões que ameaçam o seu bem-estar. A punição corporal não serve para proteger uma criança. Pelo contrário, é uma estratégia ineficaz para promover comportamentos adequados, que transmite inclusivamente a mensagem errada, à criança, de que através da violência corporal podemos resolver problemas e conflitos [2].
PROPOSTA DE REFLEXÃO: Quantas vezes parámos para respirar, evitando perder o controlo e deixando a discussão de um comportamento menos grave para depois? Reforçamos, junto da criança, a sua competência, autocontrolo, e capacidade para influenciar o que a rodeia? Agarrar na criança, pegar-lhe ao colo, mostrar-lhe o dano que causou, o que poderia acontecer, ou o perigo que poderia correr, não será mais pedagógico e eficaz, do que bater-lhe para que não o volte a fazer?
MITO 3: Cada um sabe como deve educar uma criança e age da forma que lhe parecer mais correta. Se a punição corporal fosse criminalizada, quantas pessoas não seriam condenadas? Até existem religiões que impõem o uso do castigo físico!
FACTOS: Diversas instituições procuram regulamentar estas questões, para que não seja legítima a violência sobre as crianças. Desde 1985 que o Conselho da Europa condena a punição corporal e propõe a sua proibição, através de diversas recomendações. Atualmente, a maioria dos países membros do Conselho da Europa, incluindo Portugal, aboliu a punição corporal em todos os contextos, incluindo a escola e a família. Também o Artigo 19 da Convenção sobre os Direitos das Crianças (CDC) [7] é explicito quanto à necessidade de se proteger a criança de qualquer forma de violência. Assim, também a liberdade religiosa não se deverá sobrepor aos direitos humanos, tal como expresso pelo Comité dos Direitos da Criança [8]. Diversos líderes religiosos aprovaram, inclusivamente, um compromisso de combate à violência e aos castigos corporais contra as crianças [2].
PROPOSTA DE REFLEXÃO: Uma educação e parentalidade positivas, em alternativa à punição corporal, permitirão o uso de estratégias promotoras de um desenvolvimento saudável, baseadas no estabelecimento de relações assentes na confiança e no respeito mútuos. Enquanto educadores, pais, mães ou profissionais ligados à educação de infância, que responsabilidade temos, e como poderemos sensibilizar e agir?
Erga a mão contra a punição corporal, tal com ilustrado no vídeo que se segue.
Referências
- [1] Donnelly, M., & Straus, M. A., (2005). Corporal punishment of children in theoretical perspective. New Haven: Yale University Press.
- [2] Conselho da Europa (2008). A abolição dos castigos corporais infligidos às crianças. Estrasburgo: Conselho da Europa.
- [3] Taylor, C. A., Fleckman, J. M., Lee, S. J. (2017). Attitudes, beliefs, and perceived norms about corporal punishment and related training needs among members of the “American Professional Society on the Abuse of Children”. Child Abuse & Neglect, 71, 56-68. doi:10.1016/j.chiabu.2017.04.009
- [4] Gershoff, E. T. (2013). Spanking and child development: We know enough now to stop hitting our children. Child Development Perspectives, 7(3), 133-137. doi: 10.1111/cdep.12038
- [5] Gershoff, E. T., Goodman, G. S., Miller-Perrin, C. L., Holden, G. W., Jackson, Y., & Kazdin, A. E. (2018). The strength of the causal evidence against physical punishment of children and its implications for parents, psychologists, and policymakers. American Psychologist, 73(5), 626-638. doi: 0003-066X/18/$12.00
- [6] Gershoff, E., Sattler, K. M., & Holden, G. W. (2019). School corporal punishment and its associations with achievement and adjustment. Journal of Applied Developmental Psychology, 63, 1-8. doi: 10.1016/j.appdev.2019.05.004
- [7] Organização das Nações Unidas (1989). Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas. Nova Iorque: Nações Unidas.
- [8] Comitê dos Direitos da Criança (2003). Comentário Geral N. 5, Medidas Gerais de Implementação da Convenção sobre os Direitos da Criança. Nova Iorque: Nações Unidas.
Links úteis
Nota: As ilustrações incluídas nesta publicação são da autoria de Gabriel Pagonis, ©Conselho da Europa
Se os efeitos da punição/agressão corporal ou física são conhecidos, haverá estudos sobre a punição/agressão verbal ou através da comunicação verbal? É que enquanto a primeira é fácil de identificar (embora muitos pais se refugiem em “palmadinhas simbólicas”…), a segunda parece-me ser muito mais difícil de identificar no dia-a-dia, desde o insulto verbal à ameaça para que o adulto consiga o que quer…
Por isso pergunto, há estudos nesta área, que abordem esta subjectividade da agressão verbal?
Muito obrigada pelo seu comentário.
A violência contra as crianças pode, de facto, assumir várias formas, sendo a violência física, que aqui abordámos, apenas uma delas. Concordo, por isso, que possam existir formas de violência menos visíveis e identificáveis, mas não necessariamente menos nocivas para a criança. A violência (e até a negligência) psicológica ou emocional é, por exemplo, descrita como uma outra forma de mau trato (e.g., https://apav.pt/apav_v3/images/folhas_informativas/fi_violencia_contra_criancas.pdf; https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/Hidden_in_plain_sight_statistical_analysis_EN_3_Sept_2014.pdf). Existem estudos sobre a violência verbal e as suas consequências negativas, por exemplo, para o desenvolvimento socioemocional das crianças. Deixo alguns exemplos de estudos/documentos: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/014521349190067N; http://ftp.iza.org/dp11984.pdf; http://www.apav.pt/pdf/Manual_Criancas_Jovens_PT.pdf
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