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No ano em que mais de 2 biliões de eleitores/as em 50 países participam em algum processo eleitoral e pouco tempo após o presidente dos Estados Unidos da América ter afirmado no discurso do estado da nação que a democracia está sob ataque, torna-se urgente pensar em que medida os contextos de educação pré-escolar se podem constituir como espaços de fortalecimento da democracia.

Democracia no Jardim de Infância

Devemos olhar para a democracia não apenas como um sistema político, mas como uma forma de vida que requer pensamento crítico, colaboração e respeito [1], resultando de um processo de participação ativa no processo de governo [2].  É altamente improvável que muitas das bases necessárias a uma vivência democrática surjam espontaneamente no desenvolvimento infantil, cabendo, portanto, às instituições de educação pré-escolar – e às famílias, claro – um trabalho pedagógico intencional de promoção de práticas democráticas [3].

Nessa linha, as Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar [4] apresentam a convivência democrática e a cidadania como uma das componentes da área de formação pessoal e social, devendo promover quatro aprendizagens:

  • Respeitar o outro e as suas opiniões, numa atitude de partilha e de responsabilidade social.
  • Respeitar a diversidade e solidarizar-se com os outros.
  • Desenvolver uma atitude crítica e interventiva relativamente ao que se passa no mundo que nos rodeia.
  • Conhecer e valorizar manifestações do património natural e cultural, reconhecendo a necessidade da sua preservação.

Práticas promotoras da democracia no Jardim de infância

Então, como podemos promover a democracia nos contextos de educação pré-escolar?

A promoção de práticas democráticas pode assumir diversas formas. Num estudo realizado em três contextos de educação pré-escolar em Portugal (público, privado e privado de solidariedade social), Sousa e Oxley [5] encontraram diferentes representações de democracia: uma visão estrutural, centrada na aprendizagem das regras básicas de coexistência em sociedade; uma visão individual, que valorizava a possibilidade de verbalizar opiniões pessoais e fazer escolhas pessoais, aceitando que elas seriam frequentemente limitadas pelas escolhas da maioria do grupo; e uma visão coletiva, promotora das tomadas de decisão em grupo.

Num outro estudo, as mesmas autoras [1] identificaram três abordagens pedagógicas que refletem diferentes estilos de desenvolvimento da democracia em sala de aula e que podem apoiar a reflexão acerca do posicionamento de cada educador/a:

  • Abordagem instrutiva – o/a educador/a age como “um mestre” que transmite valores e regras democráticas às crianças, mas não as escuta e não lhes dá possibilidades de fazerem escolhas.
  • Abordagem responsiva – o/a educador/a age como “um mediador” que responde às necessidades e interesses das crianças, e as incentiva a participar e expressar suas opiniões.
  • Abordagem sinergética – o/a educador/a age como “um suporte” que cria espaços democráticos onde as crianças podem coconstruir as normas e procedimentos, e envolver-se em diálogo e ação crítica.

As autoras ilustram essas abordagens (ver tabela 1) com exemplos de como educadores/as e crianças lidam com a “resolução de conflitos”, um dos 10 conceitos-chave da prática democrática que identificaram. Na abordagem instrutiva o/a educador/a impõe e aplica regras; na abordagem responsiva facilita e negocia soluções; e na abordagem sinérgica possibilita que as crianças discutam e resolvam coletivamente o conflito.

Tabela 1 – Abordagens pedagógicas na prática democrática (adaptado de Sousa & Oxley, 2022)

 Abordagem pedagógica
InstrutivaResponsivaSinérgica
Papel e características do/a educador/aMestre – transmissor da democracia: cria intencionalmente discursos democráticosMediador – respondente à democracia: cria intencionalmente respostas baseadas em valores ligados à democraciaSuporte – facilitador da democracia: cria intencionalmente “espaços democráticos”
Estilo de democracia na sala de aulaDemocracia procedimentalDemocracia interativaDemocracia crítica
Conceitos enfatizados como mais importantes para a realização da democraciaEscolher, Compartilhar, Tomar Decisões, Resolver Conflitos, Expressar Opiniões, Participar, Ouvir, Pensar Criticamente, Liberdade e RespeitoEscolher, Compartilhar, Tomar Decisões, Resolver Conflitos, Expressar Opiniões, Participar e OuvirOuvir, Pensar Criticamente, Liberdade e Respeito

Em Espanha, Espinoza e Egido [6], na investigação que realizaram sobre democracia no quotidiano nas salas de aula de jardim de infância, assumiram quatro indicadores essenciais de uma prática democrática:

  • Prevalência do diálogo e negociação, e relações sociais baseadas no afeto.
  • Visão positiva e crítica do conflito, que pode conduzir à mudança, diálogo, pensamento crítico.
  • Ação contra aspetos negativos como o racismo, injustiça, pobreza, discriminação entre outras desigualdades e defesa de oportunidades iguais para todos.
  • Gerar com frequência relações positivas com o ambiente físico e social, nomeadamente fora do jardim de infância.

Subjacente a estas ideias, há, no entanto, uma consideração de base: as crianças, desde muito novas, devem ser tratadas como cidadãos e cidadãs, e não como meros futuros cidadãos e cidadãs [7] e deve ser-lhes dada a oportunidade de experienciar a democracia o mais precocemente possível.

Nesta perspetiva, deixo aqui um desafio para reflexão: em que medida estaremos a criar condições para uma experiência de vida democrática nos nossos jardins de infância? Em que medida estamos a contribuir para o fortalecimento da democracia na nossa sociedade?

Referências

[1] Sousa, D., & Oxley, L. (2022). Moving towards critical democracy: democratic spaces in the Portuguese early years classroom. Educational Review, 1-17.

[2] Marsh, M. M., Kenyon, E. A., Cardy, T., & West, E. M. (2020). That’s my voice! participation and democratic citizenship in the early childhood classroom. Democracy and Education28(2), 1-11.

[3] Erickson, J. D., & Thompson, W. C. (2019). Preschool as a wellspring for democracy: Endorsing traits of reasonableness in early childhood education. Democracy and Education27(1), 1.

[4] Silva, A. (Coord.), Marques, L., Mata, L., & Rosa, M. (2016). Orientações pedagógicas para a educação pré-escolar. Ministério da Educação/Direção-Geral da Educação (DGE)

[5] Sousa, D., & Oxley, L. (2021). Democracy and early childhood: diverse representations of democratic education in post-dictatorship Portugal. Educational Review73(1), 17-33.

[6] Gajardo Espinoza, K., & Torrego Egido, L. (2021). Análisis de una experiencia de prácticas cotidianas de democracia en educación infantil. Teoría De La Educación. Revista Interuniversitaria, 34(1), 139–165. https://doi.org/10.14201/teri.25174

[7] Payne, K. A. (2020). Starting with Children’s Democratic Imagination. A Response to” That’s My Voice! Participation and Citizenship in Early Childhood”. Democracy and Education28(2), 6.

Democracia no Jardim de Infância: entre o aprender e o viver!

Miguel Santos

É professor na ESE/IPP, na área de Educação Especial e Inclusão. Tem doutoramento em Psicologia da Educação pela Universidade do Minho. Tem lecionado disciplinas sobre desenvolvimento humano típico e atípico e educação especial e inclusão. Os seus interesses profissionais centram-se na promoção da participação na vida em sociedade de todas as pessoas, independentemente das suas características, ao longo do seu ciclo de vida.

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