“Quem nunca trepou portas? Saltou uma fogueira? Explorou uma casa abandonada ou em construção? Brincou à luta?

Terá o risco sido necessário? Provavelmente diria que sim e que o repetiria com a mesma ou com maior intensidade.  

Nesta mensagem, falamos do brincar arriscado como elemento fundamental na promoção da saúde, do desenvolvimento e da aprendizagem das crianças, discutindo o papel dos/as profissionais de educação de infância na promoção de ambientes favoráveis à experimentação do risco.

Qual a importância do brincar arriscado?

Podemos ouvir na imagem o burburinho de um riso nervoso de quem sabe que pode cair. O brincar arriscado traz consigo a emoção do descontrolo e, em simultâneo, a alegria da superação do medo. É através dele que a criança testa as suas competências de luta, a força física e a coragem, agigantando-se sobre o “fantasma” do dano ou infortúnio. É precisamente o risco de lesão física que caracteriza o brincar arriscado e que o torna, por definição, emocionante e excitante [1].

O risco é um conceito difícil de objetivar, estando aliás enredado na subjetividade da perceção e tolerância de cada um. Por isso mesmo, Sandseter [2], investigadora Norueguesa, sistematizou e categorizou as diferentes formas de brincar arriscado. A partir de um conjunto amplo de observações e entrevistas conduzidas no contexto pré-escolar, identificou 6 categorias essenciais:

  • Grandes alturas – com perigo de lesão por queda (e.g., escalar, saltar de superfícies que se movem, equilibrar-se em cima de objetos altos, pendurar-se ou balancear-se em grandes alturas);
  • Velocidades elevadas – velocidades ou ritmos descontrolados que podem levar à colisão com outras coisas ou pessoas (e.g., andar de bicicleta ou skate, deslizar, correr ou balancear-se a grandes velocidades);
  • Instrumentos perigosos – que podem levar a lesões e feridas (e.g., instrumentos de corte como facas, serras, machados; e instrumentos de estrangulamento como cordas);
  • Elementos perigosos – onde as crianças podem cair dentro ou de alguma coisa (e.g., penhascos, piscinas, mar, fogueiras);
  • Luta e perseguição – em que as crianças se podem magoar umas às outras (e.g., lutar, usar os paus como espadas);
  • Desaparecer ou perder-se – onde as crianças podem esconder-se da supervisão do adulto ou perder-se (e.g., explorar ou brincar sozinho em ambientes desconhecidos).

Estas categorias têm vindo a ser sucessivamente validadas em vários países,  incluindo Portugal [3, 4], com as devidas adaptações culturais e temporais. No entanto, há no risco uma base transcultural e intemporal que o define como qualquer situação em que a criança reconheça potencial perigo ou desafio e, ainda assim, decida continuar o seu curso de ação [5].

É por envolver uma decisão da criança – a de tomar o risco e de explorar os próprios limites – que a discussão em torno do brincar arriscado se expandiu de uma análise estrita de consequências negativas e mecanismos de prevenção, para reconhecer e explorar o seu impacte positivo na saúde, desenvolvimento e aprendizagem da criança.

Muito além do regozijo imediato, a promoção de oportunidades para o envolvimento no brincar arriscado está associada ao desenvolvimento de [5, 6]:

  • competências para avaliar e gerir o risco – tornando a criança mais capaz de avaliar a segurança de diferentes situações, testando as próprias competências e limites e compreendendo as consequências das ações;
  • competências motoras a par do aumento da atividade física;  
  • competências sociais, com mais tempo de envolvimento no brincar, mais interação e autoconfiança;
  • e de competências de resolução de problemas.

Assumindo que não podemos prescindir destes efeitos positivos do brincar arriscado, temos então de saber como apoiá-lo de modo que as crianças se encontrem com o risco dentro de um ambiente seguro.

Como criar um ambiente que apoie o brincar arriscado?

Identificamos algumas práticas tidas como relevantes na criação de um ambiente de suporte ao brincar arriscado [7-9]:

  • Assegurar vigilância e supervisão, não numa ação proibitória, mas como forma de encorajar e seguir as iniciativas da criança, bem como de antecipar e ajudar na identificação de possíveis riscos;
  • Preparar o espaço de brincar fazendo uma avaliação do risco-benefício, isto é, pesando benefícios do brincar arriscado e medidas de segurança razoáveis. Considerar as qualidades do espaço como a presença de elementos naturais (como plantas e árvores), de materiais manipuláveis (como paus, madeira, caixotes) e a liberdade para a escolha (ver também esta mensagem);
  • Dar tempo à criança antes de intervir, dando-lhe oportunidade para descobrir sozinha como resolver, com segurança, uma situação adversa ou inesperada;
  • Usar pistas verbais que ajudem a criança a tornar-se mais consciente de alguns riscos (e.g., Repara como o chão está escorregadio) e que a instiguem na resolução de problemas (e.g., Qual é o teu plano?; Como vais descer daí?);
  • Refletir e discutir em equipa (incluindo as crianças) sobre: as próprias crenças acerca do risco no brincar; adaptações que possam ser feitas no contexto; e medidas de segurança que apoiem a participação no brincar arriscado;
  • Promover a inclusão no brincar arriscado, identificando e removendo barreiras na acessibilidade e avaliando os apoios necessários ao envolvimento de cada criança.

A incerteza e o risco são condições indelegáveis da vida humana. Saltar um muro, empoleirar-se numa árvore ou olhar de frente para o fogo são formas de brincar que nos preparam para o futuro e que nos tornam adultos mais seguros!

Já pensou nas brincadeiras que terá feito no passado e que não permitiria no presente?

Mensagem escrita em colaboração com Diana Martins – Psicomotricista no Centro de Recursos para a Inclusão (CRI) da APPACDM de Coimbra.

Referências

[1] Sandseter, E.(2009). Characteristics of risky play. Journal of Adventure Education and Outdoor Learning, 9(1), 3-21. https://doi.org/10.1080/14729670802702762

[2] Sandseter, E. (2007). Categorising risky play—how can we identify risk‐taking in children’s play? European Early Childhood Education Research Journal, 15 (2), 237-252. https://doi.org/10.1080/13502930701321733

[3] Martins, D. (2021). A Tolerância dos Pais ao Brincar Arriscado (Dissertação de Mestrado não publicada). Instituto politécnico do Porto, Porto, Portugal. Disponível em: http://hdl.handle.net/10400.22/19897

[4] Bento, M.G. (2017). Arriscar ao brincar: análise das percepções de risco em relação ao brincar num grupo de educadoras de infância. Revista Brasileira de Educação, 22(9), 385-403. https://doi.org/10.1590/S1413-24782017226920

[5] Brussoni, M., et al. (2015). What is the relationship between Risky Outdoor Play and Health in Children? A Systematic Review. Int J Environ Res Public Health, 12(6), 6423-54. https://doi.org/10.3390/ijerph120606423

[6] Sandseter, E., Kleppe, R. & Sando, O. (2021). The Prevalence of Risky Play in Young Children’s Indoor and Outdoor Free Play. Early Childhood Educ J, 49, 303–312. https://doi.org/10.1007/s10643-020-01074-0

[7] Boston University (2020). Supporting Young Children’s Risky Play. Boston University.Disponivel em: https://www.bu.edu/childrens-center/files/2020/07/Risky-Play.pdf

[8] Niehues, A., Bundy, A., Broom, A., Tranter, P., Ragen, J. & Engelen, L (2013). Everyday uncertainties: reframing perceptions of risk in outdoor free play. Journal of Adventure Education and Outdoor Learning, 13(3), 223-237. https://doi.org/10.1080/14729679.2013.798588

[9] Higginbottom, K., Newman, L., West-Sooby, K. & Wood A. (2023). Intentional Teaching for Risky-Play: Practioner Researchers Move Beyond their Comfort Zones. Australian Journal of Early Childhood, 48(1), 18-33. https://doi.org/10.1177/18369391221112740

O legado do brincar arriscado

Mónica Silveira Maia

Terapeuta Ocupacional, Doutorada em Psicologia pela Universidade do Porto (2012). É Professora Adjunta na Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto e investigadora no inED - Centro de Investigação e Inovação em Educação. Dedicada em particular ao tema da habilitação ambiental, os seus trabalhos de investigação focam o estudo de perfis de funcionamento e a sistematização de variáveis ambientais facilitadoras da participação e inclusão social de crianças e jovens com necessidades adicionais de suporte.

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