Um sono reparador é fundamental para o equilíbrio psicológico e para o comportamento da criança. Quando dormem menos que o suficiente (i.e., menos que 10 horas na idade pré-escolar [1]), as crianças podem sentir-se mais abatidas ou, pelo contrário, mais agitadas e irritáveis, o que se repercute no seu funcionamento diurno. Com efeito, um vasto corpo de investigação vem mostrando que o sono tem impacto em vários domínios do desenvolvimento [2, 3].
Ao mesmo tempo, o sono parece ser sensível a diversos fatores – como o estado de saúde da criança, as relações familiares, condicionantes do ambiente externo, etc. – em relação aos quais a criança [4], e também os/as profissionais de educação de infância, exercem uma influência mínima.
Na idade pré-escolar, a generalidade das crianças adquiriu já um padrão de sono consolidado maioritariamente no período noturno, ocorrendo fora do contexto pré-escolar. No entanto, é no jardim-de-infância que a maioria das crianças portuguesas passa grande parte do seu dia. Assim, neste contexto muitas das consequências das dificuldades ligadas ao sono fazem-se notar. Desde logo, porque é no jardim-de-infância que se dão importantes aquisições cognitivas, comunicacionais e socio-emocionais, para as quais a criança estará menos disponível se não dormir bem.
Deste modo, é essencial estimular a criação (ou fortalecimento) de redes de reflexão e diálogo acerca do papel dos/das profissionais de educação de infância na sensibilização e na sinalização dos problemas do sono na idade pré-escolar. O objetivo principal desta proposta é o de caminharmos no sentido da promoção de um sono de maior qualidade, para que as crianças possam beneficiar dos seus efeitos.
Conhecer os fatores que afetam a qualidade do sono
Há muitos fatores, ligados aos vários contextos da vida da criança, que influenciam a qualidade do sono (ao mesmo tempo que são influenciados por ela!) [5]:
Fatores da criança | Fatores dos pais ou cuidadores | Fatores do contexto social alargado | Fatores do contexto cultural |
---|---|---|---|
Maturação, desenvolvimento psicomotor, presença de doenças agudas ou crónicas, ansiedade de separação, etc. | Aspetos que possam interferir com o estado psicológico ou rotinas da criança, como crenças, psicopatologia ou satisfação marital. | Aspetos como as exigências e desafios do ambiente escolar, horários de trabalho dos pais, estatuto socioeconómico, etc. | Normas que moldam as perceções e expetativas das pessoas relativamente ao desenvolvimento da criança no geral e ao sono em particular. |
Conhecer os impactos dos problemas ligados à duração e qualidade do sono no desenvolvimento
Quando a criança não dorme o suficiente ou a qualidade do sono está comprometida, aumentam as possibilidades de ocorrência de consequências que podem prejudicar o desenvolvimento posterior. Vejamos alguns exemplos:
- Ganho excessivo de peso ao longo do tempo, com implicações na saúde [7];
- Dificuldades no funcionamento executivo (e.g., memória de trabalho, inibição de impulsos, capacidade de planeamento) [7];
- Empobrecimento na aquisição do vocabulário recetivo [8];
- Dificuldades socio-emocionais [9, 10], com aumento dos comportamentos agressivos e de desafio [11];
- Diminuição da ocorrência de comportamentos pró-sociais em contexto de pares [12].
A extensão dos impactos das dificuldades do sono é ainda mais notória se atendermos aos estudos que sugerem que estas ocorrem em 20-50% das crianças em algum momento do desenvolvimento [13, 14] e que persistem em 8.5-12% dos casos [15, 16]
Transmitir hábitos de higiene do sono
A comunicação entre o jardim-de-infância e a família pode incluir questões relacionadas com o sono (por exemplo, integrando o tema do sono infantil em projetos escolares, divulgação de brochuras, diálogo em contexto individual com a família, etc.). Os hábitos de higiene do sono ligam-se à implementação de rotinas estáveis, que envolvam a preparação de um ambiente propício ao sono. Essa rotina deverá consistir em atividades tranquilas que proporcionem um abrandamento da ativação e do ritmo interno da criança, para que a transição para o quarto e para a cama seja previsível e suave. As hiperligações que se seguem remetem para sites onde poderá encontrar algumas sugestões para comunicar aos pais:
- Children and Sleep | Sleep Foundation
- Associação Portuguesa do Sono – Brochuras (apsono.com)
- Nightwakings (nationwidechildrens.org)
Detetar indícios observáveis de que a criança possa não estar a dormir o suficiente
Seguem-se alguns indícios de que a criança possa estar a dormir menos do que precisa. No entanto, nenhum dos comportamentos deverá ser considerado um elemento suficiente para concluir a esse respeito. Por um lado, porque os problemas do sono podem ter manifestações comportamentais diferentes, dependendo da criança. Por outro lado, os mesmos comportamentos podem ter na base causas distintas. Por estes motivos, deverão ser lidos como sinais aos quais poderá valer a pena prestar atenção, dado que podem significar que a criança precisa de ajuda. Além disso, são também comportamentos que constituem desafios ao normal funcionamento das atividades no contexto pré-escolar:
- A criança está visivelmente sonolenta, parece abatida, e revela pouco interesse em envolver-se nas atividades propostas;
- A criança manifesta agitação psicomotora, tem dificuldade em colaborar, concentrar-se para cumprir as tarefas, ou terminar uma brincadeira que começou;
- A criança está mais irritada/agressiva que o habitual (e.g., frustra-se facilmente, grita, bate nos colegas);
- A criança tem episódios frequentes de choro e é difícil consolá-la.
É claro que todas as crianças têm dias difíceis, e a verdade é que muitas vezes essas questões se resolvem em poucos dias e sem sobressaltos. Os comportamentos referidos devem ser olhados com maior cuidado quando persistem no tempo e comprometem a adaptação ou o funcionamento da criança no ambiente escolar.
Aspetos a explorar com os pais
Quando se verificam alterações comportamentais que se prolongam por algumas semanas, talvez seja útil refletir sobre esta situação com os pais, num clima amistoso e livre de julgamentos!
- Analisar em conjunto a duração do sono da criança, refletindo sobre a necessidade de retomar a sesta. De acordo com a National Sleep Foundation, as crianças entre os 3 e os 6 anos devem dormir entre 10 e 13h [1]. No caso de reconhecerem que talvez a criança precise de dormir mais horas, podem juntos encontrar soluções para antecipar a hora de deitar!
- Refletir sobre se a rotina de sono está a permitir à criança relaxar e acalmar-se para fazer uma transição harmoniosa para o sono.
- Explorar o comportamento da criança em várias fases da noite: Resiste ou fica ansiosa quando se aproxima a hora de ir dormir? Como tornar esse momento mais pacífico? A criança precisa de intervenção dos pais para voltar a adormecer quando desperta durante a noite? É possível atribuir uma causa aos despertares noturnos, associada a acontecimentos diurnos? Como é que a criança acorda?
Saber quando sugerir ajuda profissional
Explorar as referidas dimensões do sono com os pais pode ser um exercício muito esclarecedor para detetar padrões de sono problemáticos. Possivelmente os pais saberão dizer se as mudanças no comportamento e/ou no sono da criança são reações a algum evento específico e pontual (e.g., a criança esteve doente, houve visitas em casa, ocorreu um conflito familiar) ou a alguma alteração mais definitiva (e.g., divórcio dos pais, nascimento de um irmão, mudança de casa, escola, ou no trabalho dos pais, etc.). No segundo caso, ou na eventualidade de não existir uma causa específica aparente, talvez seja útil encaminhar os pais no sentido de procurarem ajuda profissional junto do Pediatra ou Psicólogo.
Criar um espaço seguro para a criança
Um robusto corpo teórico tem estudado as associações entre a qualidade do sono e a internalização de um sentimento de segurança proveniente das relações de vinculação. [17, 18]. Estes estudos sugerem que quando as crianças sentem que os adultos lhes dão suporte afetivo em alturas de maior fragilidade e apoiam o desenvolvimento da sua autonomia, desenvolvem relações de vinculação segura.
À medida que a criança se desenvolve cognitiva e afetivamente, no período correspondente à idade pré-escolar, ela internaliza estas representações. Esses modelos são então guardados e mobilizadosem diversos momentos, nomeadamente durante a noite, quando se separa dos pais e das referências diurnas para dormir. A escola, na figura dos/das profissionais de educação de infância, pode ajudar a criar ou a consolidar essa segurança interna, de duas maneiras [19]:
- Fornecendo conforto emocional em alturas de necessidade (e.g., quando a criança está doente, assustada, magoada, cansada, etc.);
- Incentivando a exploração e a autonomização da criança, na medida das suas capacidades e necessidades em desenvolvimento.
Referências
[1] Hirshkowitz, M., Whiton, K., Albert, S. V., Alessi, C., Bruni, O., DonCarlos, L., …, & Hillard, P. J. A. (2015). National Sleep Foundation’s sleep time duration recommendations: Methodology and results summary. Sleep Health, 1 (1), 40-43. https://doi.org/10.1016/j.sleh.2014.12.010
[2] Astill, R. G., Heijden, K. B.Van der, van IJzendoorn, M., & van Someren, E. J. W. (2012). Sleep, cognition, and behavioral problems in school-age children: A century of research meta-analyzed. Psychological Bulletin, 138 (6), 1109-1138. https://doi.org/ 10.1037/a0028204
[3] Reynaud, E., Vecchierini, M.-F., Heude, B., Charles, M.-A., & Plancoulaine, S. (2018). Sleep and its relation to cognition and behaviour in preschool-aged children of the general population: A systematic review. Journal of Sleep Research, 27, 1-13. https://doi.org/ 10.1111/jsr.12636
[4] Meltzer, L. J., Williamson, A. A., & Mindell, J. A. (2021). Pediatric sleep health: It matters, and so does how to define it. Sleep Medicine Reviews, 57: 101425. https://doi.org/10.1016/j.smrv.2021.101425
[5] El-Sheikh, M., & Sadeh, A. (2015). I. Sleep and development: Introduction to the monograph. Monographs of the Society for Research in Child Development, 80 (1), 1-14. https://doi.org/ 10.1111/mono.12141
[6] Zhang, Z., Sousa-Sá, E., Pereira, J. R., Okely, A. D., Feng, X., & Santos, R. (2021). Correlates of sleep duration in early childhood: A systematic review. Behavioral Sleep Medicine, 19 (3), 407-425. https://doi.org/10.1080/15402002.2020.1772264
[7] Nelson, T. D., Nelson, J. M., Kidwell, K. M., James, T. D., & Espy, K. A. (2015). Preschool sleep problems and differential associations with specific aspects of executive control in early elementary school. Developmental Neuropsychology, 40 (3), 167-180. https://doi.org/10.1080/87565641.2015.1020946
[8] Seegers, V., Touchette, E., Dionne, G., Petit, D., Seguin, J. R., Montplaisir, J., …, & Tremblay, R. E. (2016). Short persistent sleep duration is associated with poor receptive vocabulary performance in middle childhood. Journal of Sleep Research, 25 (3), 325-332. https://doi.org/ 10.1111/jsr.12375
[9] Hysing, M., Sivertsen, B., Garthus-Niegel, S., & Eberhard-Gran, M. (2016). Pediatric sleep problems and social-emotional problems. A population-based study. Infant Behavior & Development, 42, 111-118. https://doi.org/10.1016/j.infbeh.2015.12.005
[10] Jung, E., & Jin, B. (2019). Associations between sleep problems, cognitive and socioemotional functioning from preschool to adolescence. Child & Youth Care Forum, 48 (6), 829-848. https://doi.org/10.1007/s10566-019-09509-5
[11] Scharf, R. J., Demmer, R. T., Silver, E. J., & Stein, R. E. (2013). Nighttime sleep duration and externalizing behaviors of preschool children. Journal of Developmental and Behavioral Pediatrics, 34 (6), 384-391. https://doi.org/ 10.1097/DBP.0b013e31829a7a0d
[12] Tso, W., Rao, N., Jiang, F., Li, A. M., Lee, S.-L., Ho, F. K.-W., …, & Ip, P. (2016). Sleep duration and school readiness of Chinese preschool children. Journal of Pediatrics, 169, 266-271. https://doi.org/ 10.1016/j.jpeds.2015.10.064
[13] Du Mond, C., & Mindell, J. A. (2011). Sleep and sleep problems: From birth to 3. Zero Three, 32, 30-35.
[14] Owens, J. (2007). Classification and epidemiology of childhood sleep disorders. Sleep Medicine Clinic, 2 (3), 353-361. https://doi.org/10.1016/j.jsmc.2007.05.009
[15] Gregory, A.M., Caspi, A., Eley, T.C., Moffitt, T.E., O’Connor, T.G., & Poulton, R. (2005). Prospective longitudinal associations between persistent sleep problems in childhood and anxiety and depression disorders in adulthood. Journal of Abnormal Child Psychology, 33 (2), 157-163. https://doi.org/10.1007/s10802-005-1824-0
[16] Simola, P., Liukkonen, K., Pitkäranta, A., Pirinen, T., & Aronen, E.T. (2012). Psychosocial and somatic outcomes of sleep problems in children: A 4-year follow-up study. Child: Care, Health and Development, 40 (1), 60-67. https://doi.org/ 10.1111/j.1365-2214.2012.01412.x
[17] Perpétuo, C., Diniz, E., &Veríssimo, M. (2021). A systematic review on attachment and sleep at preschool age. Children, 8 (10), https://doi.org/10.3390/children8100895
[18] Simard, V., Chevalier, V., & Bédard, M.-M. (2017). Sleep and attachment in early childhood: A series of meta-analyses. Attachment & Human Development, 19 (3), 298-321. https://doi.org/10.1080/14616734.2017.1293703
[19] Waters, H. S., & Waters, E. (2006). The attachment working models concept: Among other things, we build script-like representations of secure base experiences. Attachment & Human Development, 8 (3), 185-197. https://doi.org/10.1080/14616730600856016