A proteção das crianças contra todas as formas de maus-tratos é um direito fundamental garantido na Convenção sobre os Direitos da Criança [1] e em outros tratados e normas internacionais. No entanto, os maus-tratos continuam a ser uma realidade na vida de crianças em todo o mundo, independentemente das suas circunstâncias económicas e sociais, da cultura, da religião ou da etnia, com consequências imediatas e a longo prazo no seu desenvolvimento e nas suas vidas.
Assinalando-se, no próximo mês de abril, o Mês Internacional da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância, nesta mensagem abordarei alguns conceitos chave relacionados com os maus-tratos na infância, as suas consequências e a sua prevenção.
Maus-tratos na infância: definição e implicações
Os maus-tratos na infância podem ser definidos como “todas as formas de lesão física ou psicológica, abuso sexual, negligência ou tratamento negligente, exploração comercial ou outro tipo de exploração, resultando em danos atuais ou potenciais para a saúde da criança, a sua sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade num contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder” [2, p.15]. Estes atos são perpetrados contra pessoas com idade inferior a 18 anos [3] e infligem dano, dor e humilhação e também matam.
Os maus-tratos a crianças ocorrem em contextos diversificados, incluindo os contextos familiar e educativo (creche, jardim de infância, escola), a comunidade e a Internet. São perpetrados por quem as deveria proteger, nomeadamente, familiares, educadores/as e professores/as, profissionais de diversas áreas, vizinhos/as, pessoas estranhas e outras crianças [3].
Vários estudos têm evidenciado o impacto, a curto, médio e longo prazos, dos maus-tratos a crianças no seu desenvolvimento e funcionamento. Assim, os maus-tratos na infância:
– encontram-se associados a competências cognitivas limitadas, ansiedade, depressão, comportamentos agressivos e dificuldades no funcionamento emocional, social e escolar [4, 5]; |
– provocam stresse e a consequente ativação da produção de cortisol, o que poderá ocasionar perturbações no desenvolvimento inicial do cérebro e, em casos extremos, prejudicar o desenvolvimento dos sistemas nervoso e imunológico, implicando, na idade adulta, um risco maior de problemas de saúde física e mental [6]; |
– contribuem para desigualdades na educação, estimando-se que 13% das crianças vítimas de maus-tratos têm uma maior probabilidade de não concluírem a escolaridade [3]; |
– encontram-se associados, na adolescência e na idade adulta, a problemas de saúde mental, ao consumo de substâncias, a comportamentos de vitimização e/ou violentos e a condições de saúde crónicas, como asma, diabetes, dor e obesidade [4, 5]; |
– têm um impacto económico, incluindo custos de hospitalização, tratamentos de saúde mental, serviços de proteção e, a longo prazo, elevados custos de saúde [3]. |
Maus-tratos na infância: Alguns factos indesmentíveis
Os maus-tratos na infância permanecem insuficientemente documentados e notificados, devido a uma variedade de razões, tais como: o conceito de maus-tratos infantis ser complexo e difícil de estudar; algumas formas de violência contra crianças serem socialmente aceites, toleradas, desvalorizadas ou não percebidas como abusivas; muitas vítimas serem muito jovens, ou muito vulneráveis, para revelarem a sua experiência ou para se protegerem e, muitas vezes, quando denunciam um abuso, o sistema legal não responde e os serviços de proteção não estão disponíveis [3].
Apesar destas limitações, alguns factos são indesmentíveis e preocupantes [3]:
- cerca de três em cada quatro crianças – ou 300 milhões de crianças – com idades compreendidas entre 2 e 4 anos são vítimas de punição física e/ou de violência psicológica por familiares e/ou por outros/as prestadores/as de cuidados;
- uma em cada cinco mulheres e um em cada 13 homens relatam terem sido vítimas de abusos sexuais quando tinham entre 0 e 17 anos;
- uma criança que sofre maus-tratos tem, quando adulta, uma maior probabilidade de maltratar outras pessoas;
- o apoio continuado a crianças e a famílias pode reduzir o risco de reincidência de maus-tratos e minimizar as suas consequências.
Em Portugal, dados de 2021 relativos à comunicação de situações de crianças em perigo são reveladores da dimensão deste problema [7]:
- a faixa etária dos 0 aos 5 anos foi a segunda mais representada, com 10 276 comunicações;
- no caso de crianças com 2 anos ou menos, registaram-se 5305 comunicações, um acréscimo de 359 relativamente a 2020;
- a Violência Doméstica (ofensa física e exposição a violência doméstica), seguida da Negligência (exposição a comportamentos que possam comprometer o bem-estar e desenvolvimento da criança e falta de supervisão e acompanhamento familiar), constituem as categorias mais registadas.
Fatores de risco e de proteção para os maus-tratos na infância
A compreensão dos fatores de risco e de proteção para os maus-tratos na infância é crucial para uma prevenção eficaz, podendo situar-se em diferentes níveis: individual, interpessoal, comunitário e social [4, 5].
No que respeita aos fatores de risco:
– a nível individual incluem-se fatores, como a idade (as crianças mais novas podem correr um risco maior devido à maior dependência e ao tempo passado com cuidadores/as), o género (em contextos de conflito armado ou de acolhimento de refugiados, as raparigas são particularmente vulneráveis à violência sexual, à exploração e ao abuso por parte de combatentes, forças de segurança, membros das suas comunidades, trabalhadores/as humanitários/as e outros/as), as condições de saúde (crianças com condições especiais de saúde ou de incapacidade correm maior risco de maus-tratos) e características de personalidade (e.g., crianças muito ativas, que choram persistentemente e/ou com dificuldade para se acalmarem) [3, 4]; |
– a nível interpessoal, que inclui as interações com pares e com familiares, o risco de maus-tratos encontra-se associado a situações de pobreza, a problemas de saúde mental e/ou ao consumo de substâncias pelos familiares e a violência conjugal [3, 4]; |
– a nível comunitário, que inclui contextos nos quais as crianças vivem e interagem com outras pessoas (e.g., contextos educativos e habitacionais), o risco poderá aumentar em contextos situados em áreas com taxas elevadas de criminalidade, de violência e de desvantagem concentrada (pobreza, desemprego, habitação precária) [4]; |
– a nível social, o risco associa-se a normas sociais e culturais (e.g., desigualdade de género), assim como a políticas económicas que reduzam o rendimento familiar e criem incerteza financeira generalizada [4]. |
Relativamente aos fatores de proteção, os resultados de vários estudos evidenciaram que:
– a nível individual, competências de autorregulação, sociais, adaptativas e a autoestima ajudam a promover resultados positivos em crianças que sofreram maus-tratos [4, 5]; |
– a nível interpessoal, o apoio social ao/à cuidador/a, à família e amigos/as, reduzindo o seu stresse e promovendo o seu bem-estar, poderão prevenir os maus-tratos na infância [4]; |
– a nível comunitário incluem-se a disponibilização às famílias de serviços de educação de elevada qualidade e a promoção da vizinhança [8]; |
– a nível social, o aumento do rendimento familiar e dos benefícios sociais poderá prevenir os maus-tratos a crianças [4, 5]. |
Prevenir os maus-tratos na infância é, portanto, possível e requer uma abordagem multissetorial e interdisciplinar [3], mas…
NÃO ESQUECER! Os maus tratos a crianças são crimes públicos e devem ser denunciados por QUEM OS testemunha ou DELES tenha conhecimento.
Já se confrontou com situações de maus-tratos a crianças? Como as identificou? Na sua instituição existe um procedimento para lidar com estas situações? Partilhe connosco as suas experiências.
Alguns recursos úteis
– Lei de protecção de crianças e jovens em perigo [9]
– INSPIRE: sete estratégias para pôr fim à violência contra crianças [10]
– The 2021/2022 Prevention Resource Guide [11]
Para além destes, as mensagens publicadas neste blogue sobre este tema podem também ser úteis:
– Mitos sobre a punição corporal: Bater nas crianças… É para o seu próprio bem?
– “Aqui ninguém toca”: Estratégias de prevenção do abuso sexual
– A prevenção primária do abuso sexual de crianças
Referências
[1] UNICEF (2019). Convenção sobre os Direitos da Criança e protocolos facultativos. Comité Português para a UNICEF. https://unicef.pt/media/2766/unicef_convenc-a-o_dos_direitos_da_crianca.pdf
[2] World Health Organization (1999). Report of the consultation on child abuse prevention. World Health Organization. https://apps.who.int/iris/bitst ream/handl e/10665/ 65900/ WHO_HSC_PVI_99.1.pdf?seque nce=1&isAll owed=yWorld Health Organization
[3] World Health Organization (2022). Child maltreatment. World Health Organization. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/child-maltreatment
[4] Austin, A. E., Lesak, A. M., & Shanahan, M. E. (2020). Risk and protective factors for child maltreatment: A review. Current epidemiology reports, 7(4), 334–342. https://doi.org/10.1007/s40471-020-00252-3
[5] Mehta, D., Kelly, A. B., Laurens, K. R., Haslam, D., Williams, K. E., Walsh, K., Baker, P. R. A., Carter, H. E., Khawaja, N. G., Zelenko, O., & Mathews, B. (2023). Child maltreatment and long-term physical and mental health outcomes: An exploration of biopsychosocial determinants and implications for prevention. Child psychiatry and human development, 54(2), 421–435. https://doi.org/10.1007/s10578-021-01258-8
[6] Nunes, K., Tonietto, L., Dias, K., & Rego, C. (2020). O impacto dos maus-tratos na infância no desenvolvimento cerebral e no funcionamento cognitivo: uma revisão. Diaphora, 9(3), 9-13. http://www.sprgs.org.br/diaphora/ojs/index.php/diaphora/article/view/241/220
[7] Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (2022). Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ 2021. CNPDPCJ. https://www.cnpdpcj.gov.pt/documents/10182/16406/ra2021cpcj/aba29f21-787d-41fc-8ee8-76d5efa82855
[8] Branco, M. S. S., Altafim, E. R. P., & Linhares, M. B. M. (2022). Universal intervention to strengthen parenting and prevent child maltreatment: Updated systematic review. Trauma, Violence, & Abuse, 23(5), 1658–1676. https://doi.org/10.1177/15248380211013131
[9] Lei n.º 147/1999. Lei de protecção de crianças e jovens em perigo. Diário da República, I Série-A, n.º 204 de 1 de setembro de 1999, 6115 – 6132. https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=545&tabela=leis&so_miolo=
[10] World Health Organization (2016). INSPIRE: sete estratégias para pôr fim à violência contra crianças. WHO. https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/207717/9789241565356-por.pdf?ua=1
[11] U.S. Department of Health and Human Services (2021). The 2021/2022 prevention resource guide. Children’s Bureau. https://www.childwelfare.gov/pubPDFs/guide_2021.pdf