O pai do Dinis, assumo que com a melhor das intenções, todos os dias me perguntava “O que fizeram hoje?”. Ficava muito entusiasmado quando lhe mostrava um desenho, uma pintura, um objeto de plasticina moldado pelo filho, quando lhe falava da dramatização de uma história ou quando lhe entregava alguma construção que podia levar para casa. Contudo, ficava desapontado quando lhe dizia: brincámos, conversámos, falámos sobre o almoço, fomos ao jardim…

E continuava a perguntar: “O que fizeram hoje”?!

Enquanto lhe respondia sobre a importância, para mim indiscutível, das rotinas em creche, na minha cabeça bloqueava uma resposta indelicada: “Nada, não fizemos nada!”.

Baseado no relato de uma educadora, sobre o pai de uma criança que não se chama Dinis

Este relato surgiu no âmbito de uma conversa com uma educadora, na sequência da publicação da mensagem “Para quem acha que a creche é “SÓ” para trocar fraldas: a intencionalidade educativa em creche”. A educadora dizia-me que é necessário escrever e falar mais sobre este tópico, pois na creche passa-se tanta coisa com interesse para as crianças e positiva do ponto de vista pedagógico, para além das chamadas “atividades estruturadas” e que podem ter um “produto” palpável! Como ilustrava a conversa com aquele pai, a educadora sentia que é necessário haver uma maior valorização das oportunidades de aprendizagem e de desenvolvimento que existem nas rotinas diárias.

As rotinas diárias como oportunidades para a aprendizagem e o desenvolvimento

As rotinas diárias, como a alimentação, a troca de fraldas, a ida à casa de banho, o momento de vestir, a chegada da criança à creche e a saída são excelentes oportunidades para a aprendizagem [1, 2]. Efetivamente, devem ser vistas como atividades pedagógicas, dotadas de intencionalidade, nas quais os/as educadores/as de infância têm possibilidade de se concentrarem em profundidade no bem-estar e no desenvolvimento da criança com quem estão a interagir naquele momento [1, 3].

É incontestável que o desenvolvimento nos primeiros anos de vida requer uma combinação de cuidados e de práticas pedagógicas de elevada qualidade, perfeitamente integradas [1]. Assim, em creche, ao integrarem-se práticas pedagógicas de elevada qualidade nas rotinas diárias, proporcionam-se momentos para aprendizagens valiosas – e significativas – em todos os domínios do desenvolvimento [3, 4] e em todas as áreas de conteúdo previstas para a educação de infância [5]. Podem ser desenvolvidas competências sociais, a autonomia, a motricidade, a comunicação e a linguagem, aumentando também o conhecimento acerca do mundo. 

A importância de se investir (mais) nas rotinas diárias

Alguns estudos mostraram que é necessário um maior investimento nos momentos de rotina, durante os quais as interações tendem a ser caracterizadas por menos sensibilidade do/a profissional de educação de infância e por serem menos estimulantes do que as atividades estruturadas ou os momentos de jogo/brincadeira [e.g., 6].

Num estudo, realizado em Portugal em 90 salas de berçário [7], verificou-se que:

  • a qualidade das interações tendia a ser menor nos períodos em que predominavam as rotinas de cuidados, sendo nos outros momentos que os/as profissionais mostraram mais carinho e responsividade, eram mais sensíveis às necessidades dos bebés, facilitavam mais a exploração e estimulavam mais o desenvolvimento da linguagem;
  • o envolvimento do/a profissional (comportamentos verbais e não verbais com uma criança ou grupo, como conversar com as crianças, responder às suas solicitações verbais, sorrir e outras expressões faciais, abraçar ou segurar o/a bebé, gestos físicos ou mostrar brinquedos e materiais) também era menor nos momentos em que predominavam rotinas de cuidado pessoal;
  • quando o/a profissional estava muito envolvido/a, então, as diferenças entre momentos em que predominavam as rotinas e os outros momentos tendiam a ser menores.

Concluindo, fica evidente a importância de dedicar mais atenção às rotinas de cuidado, com maior envolvimento dos/as profissionais e melhoria da qualidade das interações.

E como mostrar às famílias a importância de valorizar as rotinas diárias?

A resposta a esta pergunta fica como desafio para os/as nossos/as leitores/as. Aqui fica apenas uma sugestão: e se tirar fotografias desses momentos, com legendas como as que se seguem?

– Hoje conversámos sobre as ervilhas e outras leguminosas ao almoço! Consegui pegar numa ervilha com o movimento de pinça!

– Lanchámos no jardim. O Dinis achou a meloa doce e descobriu que se pode comer à colher. Ah! E ficou curioso quando viu uma minhoca!

Hoje já lavei as mãos sozinho! Achas que estou a crescer muito depressa?

– Como o lençol do Dinis hoje tinha uma vaca, falámos sobre os mamíferos.

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Referências

[1] Loizou, E., & Recchia, S. L. (2018). In-service infant teachers re-envision their practice through a professional development program. Early Education and Development, 29(1), 91–103. https://doi.org/10.1080/10409289.2017.1343561 

[2] Rutanen, N., & Hännikäinen, M. (2017). Care, upbringing and teaching in ‘horizontal’ transitions in toddler day-care groups. In J. White, & C. Dalli (Eds.), Under-three year olds in policy and practic (pp. 57–72). Springer. https://doi. org/10.1007/978-981-10-2275-3_4 

[3] Bussey, K., & Hill, D. (2017). Care as curriculum: Investigating teachers’ views on the learning in care. Early Child Development and Care, 187(1), 128–137. https://doi.org/10.1080/03004430.2016.1152963 

[4] Sims, M., Alexander, E., Nislin, M., Pedey, K., Tausere-Tiko, L., & Sajaniemi, N. (2018). Infant and toddler educare: A challenge to neoliberalism. South African Journal of Childhood Education, 8(1), 1–8. https://doi.org/10.4102/sajce. v8i1.594 

[5]  Lopes da Silva, I., Marques, L., Mata, L., & Rosa, M. (2016). Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar. Ministério da Educação, Direção-Geral da Educação (DGE). https://www.dge.mec.pt/orientacoes-curriculares-para-educacao-pre-escolar

[6] Degotardi, S. (2010). High-quality interactions with infants: Relationships with early-childhood practitioners’ interpretations and qualification levels in play and routine contexts. International Journal of Early Years Education, 18(1), 27–41. https://doi.org/10.1080/09669761003661253 

[7] Cadima, J., Barros, S., Bryant, D. M., Peixoto, C., Coelho, V., & Pessanha, M. (2022) Variations of quality of teacher–infant interactions across play and care routine activities. Early Education and Development. Advance online publication. DOI: 10.1080/10409289.2021.2023791

O que fizeram hoje na creche? Nada… ou tanta coisa, que é difícil contar!

Sílvia Barros

É professora na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto, na área de Psicologia. Tem doutoramento em Psicologia pela Universidade do Porto. Os seus principais interesses de investigação incluem: qualidade dos contextos de educação e cuidados, interações adulto-criança, envolvimento das crianças, formação de profissionais de educação de infância.

Um comentário sobre “O que fizeram hoje na creche? Nada… ou tanta coisa, que é difícil contar!

  • 18/11/2022 at 18:42
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    Adorei o seu blog, muito elucidativo, parabéns!!

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