Nem todas as crianças que frequentam salas de jardim de infância têm o português como língua materna. Assim, e como o conhecimento da língua portuguesa é essencial para a adaptação futura [1], é necessário promover a sua aprendizagem por parte de todas as crianças, incluindo as que falam outras línguas desde o nascimento.

Contudo… O que fazer quando as crianças se expressam na sua língua materna, e não em português, no jardim de infância? Se investirmos na língua materna, podemos atrasar a aprendizagem da língua portuguesa ou, pelo contrário, podemos fomentar o desenvolvimento bem-sucedido de duas línguas? Como responder aos pais destas crianças quando perguntam o que devem fazer em casa para promover o desenvolvimento da linguagem, em geral, ou para promover a aprendizagem da língua portuguesa? E o que fazer quando as crianças interagem entre si numa língua que não o português?

A reflexão que conduz à resposta a estas perguntas pode basear-se em três pressupostos básicos:

  1. As crianças que não têm o português como língua materna estão a aprender, em simultâneo, duas línguas (ou mais);
  2. O multilinguismo constitui uma força e um recurso extra para o futuro;
  3. Todas as línguas maternas têm igual valor como recurso para o futuro e como dimensão chave da herança cultural de cada criança e de cada família.

É também com base nestes pressupostos que identificamos três razões para valorizar as línguas maternas que coexistem no grupo:

Promover identidades étnicas ou culturais positivas

As nossas Orientações Curriculares [1] afirmam que “o respeito pelas línguas e culturas das crianças é uma forma de educação intercultural, levando a que as crianças se sintam valorizadas e interajam com segurança com os outros”. Assim, a valorização da língua materna constitui um meio para promover a autoconfiança, o orgulho em relação à família e uma identidade social positiva. Estes são objetivos muito importantes uma vez que a confiança na própria identidade étnica ou cultural conduz a uma maior aceitação e valorização da diversidade e, assim, a relações mais harmoniosas e tolerantes [3], contribuindo para a coesão social.

Promover a aprendizagem da língua portuguesa e o desenvolvimento cognitivo

Pode parecer contraintuitivo, mas a investigação sugere que o desenvolvimento da língua materna favorece a aprendizagem de uma segunda língua [4]. Por exemplo, uma criança que tem experiências de literacia de elevada qualidade em contexto familiar (por exemplo, que lê livros com frequência), quer na língua materna quer na segunda língua, tem mais probabilidade de vir a aprender melhor uma segunda língua [5].

Assim, e porque a exposição à língua é essencial para a aprendizagem, quanto mais oportunidades uma criança tiver – em casa, no jardim de infância ou na comunidade – para expandir o seu vocabulário e compreender a estrutura da sua língua materna, maior será a probabilidade de vir a ser fluente na língua portuguesa, assumindo que também tem uma elevada exposição à língua portuguesa, quer em contextos formais (como o jardim de infância) quer em contextos informais (como atividades extracurriculares) [5].

O percurso de aprendizagem e o ritmo com que as crianças multilingues adquirem fluência na língua portuguesa é certamente diferente; contudo, os potenciais benefícios do multilinguismo justificam o investimento na aprendizagem de duas línguas (ou mais). A investigação sugere, por exemplo, que as crianças multilingues apresentam melhores resultados em funções executivas como a flexibilidade cognitiva, isto é, a capacidade para adaptar o comportamento às exigências das tarefas e resolver problemas de forma criativa [4]. Há mesmo evidências de que o multilinguismo pode ter um efeito protetor nas funções cognitivas em adultos com mais de 65 anos [6].

Promover e diversificar as oportunidades de aprendizagem de todas as crianças da sala

Uma escola inclusiva perspetiva a diversidade como uma fonte de oportunidades de aprendizagem para todas as crianças. Ao valorizar todas as línguas maternas das crianças do grupo, aumentamos as oportunidades de comunicação e de contacto entre todas as crianças, favorecendo a criação de uma comunidade de aprendizagem, em que todos têm algo a ensinar e todos têm algo a aprender. Por exemplo, utilizar no dia a dia os termos equivalentes a “olá”, “bom dia”, “bom apetite”, “bom trabalho”, “obrigada”, “por favor” e “até amanhã”, nas línguas maternas existentes no grupo e integrar nas rotinas diárias a pergunta “como é que será que se diz […palavra ou expressão…] em […língua…]”, podem ser estratégias simples de transmitir apreço pelos saberes das várias crianças e de encorajar a curiosidade e a partilha entre elas. Naturalmente, as respostas podem ser obtidas junto das próprias crianças, das famílias e/ou de processos de pesquisa ativa.

Propostas de reflexão

Se estes argumentos a favor da valorização das línguas maternas de todas as crianças do grupo são convincentes, o próximo passo é refletir sobre as práticas educativas que traduzem esta ideia. As perguntas que se seguem podem orientar essa reflexão:

  1. Valoriza igualmente as línguas maternas de todas as crianças da sala? Como?
  2. Como atua quando uma criança do grupo se expressa na sua língua materna? Em que medida é que a sua resposta demonstra, implícita ou explicitamente, apreço pelo valor e interesse da língua?
  3. Como utiliza as rotinas e atividades da sala para valorizar e utilizar de forma significativa todas as línguas maternas que coexistem na sala?
  4. Como identifica formas significativas de comunicar com as crianças que não têm o português como língua não materna? Envolve as famílias das crianças nesse processo?
  5. As recomendações que faz às famílias potenciam a exposição à língua materna e à língua portuguesa em simultâneo?

Valorizar a língua materna de todas as crianças não implica que cada educador/a aprenda múltiplas línguas ao longo da sua carreira. Contudo, passos simples como acolher cada criança, a cada dia, com o cumprimento típico da sua língua ou cultura, podem sinalizar o apreço pelo recurso único que cada criança traz para o grupo e pode levar para a vida. Em cada grupo, com cada criança e cada família, outras estratégias podem emergir de forma natural e significativa no contexto das rotinas diárias e atividades do grupo.

 

Cecília Aguiar, ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

 

Referências

[1] Lopes da Silva, I., Marques, L., Mata, L., & Rosa, M. (2016). Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar. Lisboa: Ministério da Educação/Direção-Geral da Educação (DGE). Disponível em: http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Noticias_Imagens/ocepe_abril2016.pdf
[2] Derman-Sparks, L., & Edwards, J. O. (2010). Anti-bias education for young children and ourselves. Washington, DC: National Association for the Education of Young Children.
[3] Berry, J. W. (2013). Research on multiculturalism in Canada. International Journal of Intercultural Relations, 37(6), 663–675. doi: 10.1016/j.ijintrel.2013.09.005
[4] Castro, D. C., García, E. E., & Markos, A. M. (2013). Dual language learners: Research informing policy. Chapel Hill: The University of North Carolina, Frank Porter Graham Child Development Institute, Center for Early Care and Education—Dual Language Learners. Disponível em: https://cecerdll.fpg.unc.edu/sites/cecerdll.fpg.unc.edu/files/imce/documents/%232961_ResearchInformPolicyPaper.pdf
[5] Dixon, L. Q., Zhao, J., Shin, J-W., Wu, S., Su, J-H., Burgess-Brigham, R., Gezer, M. U., & Snow, C. (2012). What we know about second language acquisition: A synthesis from four perspectives. Review of Educational Research, 82, 5 – 60. doi: 10.3102/0034654311433587
[6] Perquin, M., Vaillant, M., Schuller, A-M., Pastore, J., Dartigues, J-F., Lair, M-L., et al. (2013) Lifelong exposure to multilingualism: New evidence to support cognitive reserve hypothesis. PLoS ONE 8(4): e62030. doi: 10.1371/journal.pone.0062030. Disponível em: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0062030

3 razões para valorizar as línguas maternas de todas as crianças do grupo

Cecília Aguiar

Professora Associada no ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, na área de Psicologia. Os principais interesses de investigação incluem a qualidade em contexto de creche e jardim de infância, a intervenção precoce na infância e o desenvolvimento social das crianças. Apaixonada por literatura infantil.

3 comentários sobre “3 razões para valorizar as línguas maternas de todas as crianças do grupo

  • 10/11/2018 at 08:43
    Permalink

    No âmbito do artigo poderíamos também considerar a língua ‘brasileira’?

    Responder
    • 12/11/2018 at 12:35
      Permalink

      Obrigada pela sua pergunta, que me parece muito importante.
      O português falado no Brasil constitui uma expressão da cultura e da história do país. Nessa perspetiva, reconhecer e valorizar essa expressão cultural tem o potencial de promover o desenvolvimento de identidades culturais positivas das crianças oriundas do Brasil e de permitir ao grupo de crianças uma compreensão mais abrangente e aprofundada da história e do enorme alcance da língua portuguesa.
      Esperamos continuar a explorar esta temática no futuro e contamos com o seu contributo.

      Responder
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