“Crianças são um povo e vivem num país estrangeiro” (Beppe Wolgers, 1956)
Durante os primeiros anos de vida, as crianças são totalmente dependentes dos adultos que cuidam delas e que são responsáveis pela satisfação das suas necessidades. Se a satisfação destas necessidades estiver comprometida, as crianças poderão enfrentar algum tipo de risco para o seu processo de desenvolvimento.
Nesta mensagem, abordarei a evolução do conceito de “crianças em risco” e de que forma poderemos protegê-las dos riscos.
Crianças de risco ou em risco? Evolução do conceito
De forma geral, o termo “crianças em risco” refere-se a crianças que devido à presença de alterações biológicas, sociais ou psicológicas menos acentuadas, podem vir a atualizar ou a agravar situações que comprometem o seu desenvolvimento [1, p.40]. Afastando-se de abordagens em que a noção de crianças em risco assentava em fatores de risco biológico, tornou-se evidente o interesse sobre os efeitos dos contextos de vida do indivíduo no seu desenvolvimento, em especial quando esses contextos parecem colocar esse indivíduo em desvantagem [2]. Assim, do conceito de “crianças de risco”, que considerava o risco como um traço individual e a existência de uma relação de causa-efeito entre os acidentes de caráter biológico ocorridos precocemente e os resultados desenvolvimentais posteriores, evoluiu-se para o conceito de “crianças em risco”, integrando no processo de desenvolvimento a pessoa e o seu contexto ou ecologia.
As crianças não vivem num país estrangeiro: o risco sociocultural
De acordo com uma abordagem ecológica, o meio ambiente da criança inclui forças imediatas, como a família e a escola, e influências menos imediatas, como as leis e as instituições [3], podendo os riscos para o desenvolvimento advir de ameaças diretas ou da ausência de oportunidades. Este risco sociocultural repercute-se em todos os contextos de vida das crianças, existindo características do contexto imediato, como a dimensão do agregado familiar (núcleos monoparentais ou agregados familiares numerosos), ou do contexto distal, como o baixo nível educacional e o baixo estatuto profissional dos pais, assim como o baixo rendimento económico, que poderão empobrecer a qualidade das experiências das crianças [4]. Ademais, tem sido realçado que alguns aspetos fundamentais da arquitetura cerebral começam a ser moldados pela experiência antes e logo após o nascimento, estabelecendo-se bem antes de uma criança entrar na escola [5].
Alguns estudos têm evidenciado que a acumulação e a persistência de fatores de risco no contexto familiar (e.g., baixo nível educacional e situações de desemprego dos pais, pobreza) podem ter efeitos negativos no desenvolvimento das crianças [4], havendo maior probabilidade de apresentarem dificuldades ao longo do desenvolvimento, principalmente se não existirem, por exemplo, contrapartidas educacionais compensatórias [6].
Tem também sido realçado que, em famílias que enfrentam múltiplos fatores de risco, a probabilidade de os pais interagirem de forma menos calorosa e responsiva com os/as seus/suas filhos/as é maior, apresentando níveis mais elevados de afeto negativo e uma maior inconsistência nas práticas educativas [7], o que tem sido considerado como preditor de posteriores resultados desenvolvimentais das crianças [8].
Crianças em risco sociocultural: como protegê-las?
Durante a infância, a participação em contextos educativos extrafamiliares (creche, jardim-de-infância) de elevada qualidade é fundamental para todas as crianças, assumindo-se como fator protetor para as que, oriundas de contextos familiares socialmente mais desfavorecidos ou menos estimulantes, se encontrem em risco de atraso de desenvolvimento [2].
No entanto, apenas contextos de boa qualidade podem ter efeitos positivos no desenvolvimento das crianças a nível social, cognitivo e da linguagem, e no posterior desempenho académico [9], exercendo o referido efeito protetor no caso de crianças em contextos socialmente mais desfavorecidos [2].
Mas, o que se entende por qualidade dos contextos educativos? Ajude-nos a discutir este assunto, nos comentários!
Referências
[1] Bairrão, J. (1994). A perspectiva ecológica na avaliação de crianças com necessidades e suas famílias: O caso da Intervenção Precoce. Inovação, 7, 37-48.
[2] Pessanha, M., Cadima, J., Nunes, C. Novais, I., & Alves, M. J. (2009). Risco sociocultural e intervenção na comunidade. In G. Portugal (Ed.), Ideias, projectos e inovação no mundo das infâncias: O percurso e a presença de Joaquim Bairrão (pp. 77-91). Aveiro: Universidade de Aveiro.
[3] Garbarino, J., & Ganzel, B. (2000). The human ecology of early risk. In J.P. Shonkoff, & S.J. Meisels (Eds), Handbook of early childhood intervention (2nd ed., pp. 76-93). Cambridge: Cambridge University Press.
[4] Cadima, J., Peixoto, C., & Leal, T. (2009). Factores de risco: A multiplicidade das variáveis contextuais no desenvolvimento das crianças. Psicologia. Contextos Educativos e Desenvolvimento: Visão e obra de Joaquim Bairrão, XXIII (2), 175-192.
[5] Shonkoff, J. P., & Bales, S. N. (2011). Science does not speak for itself: Translating child development research for the public and its policymakers. Child Development, 82(1), 17-32. doi:10.1111/j.1467-8624.2010.01538.x
[6] Burchinal, M. R., Roberts, J. E., Hooper, S., & Zeisel, S. A. (2000). Cumulative risk and early cognitive development: A comparison of statistical risk models. Developmental Psychology, 36(6), 793-807. http://dx.doi.org/10.1037/0012-1649.36.6.793
[7] Lengua, L., Kiff, C., Moran, L., Zalewsky, M., Thompson, S., Cortes, R., & Ruberry, E. (2014). Parenting mediates the effects of income and cumulative risk on the development of effortful control. Social Development, 23, 631–649. doi: 10.1111/sode.12071
[8] Pianta, R., & Rimm-Kaufman, S. (2006). The social ecology of the transition to school: Classrooms, families, and children. In K. McCartney & D. Phillips (Eds.), The handbook of early childhood development (pp. 490-507). Oxford, UK: Blackwell Publishing.
[9] Pinto, A. I., Pessanha, M., & Aguiar, C. (2013). Effects of home environment and center-based child care quality on children’s language, communication, and literacy outcomes. Early Childhood Research Quarterly, 28, 94-101. doi: 10.1016/j.ecresq.2012.07.001
Olá boa noite. A questão da qualidade nos contextos educativos merece , sem dúvida, reflexão. O que para algumas famílias pode ser um serviço/contexto bom, para outras poderá não o ser, depende, portanto, das expectativas das famílias.
Por outro lado, e tendo em conta o tema das criança em risco, penso que um contexto educativo de qualidade deve ser aquele que consiga colmatar as necessidades educativas, emocionais, afectivas das crianças. Onde os profissionais estejam atentos e acima de tudo sejam sensíveis às especificidades de cada criança, que se importem com a sua história de vida, que consigam compreender as suas carências, as suas perdas, os seus medos. Que esteja de braços abertos para cada uma destas crianças. O projeto educativo deverá ser um reflexo desta forma de estar. Com materiais e muita criatividade capaz de elevar a curiosidade destas crianças e motiva-las para a aprendizagem e desenvolvimento integral.
Não sei se as instituições educativas estão a funcionar de modo a proteger estas crianças que acabam por ser vítimas de um ambiente hostil.
Boa noite, Susana.
Muito obrigada pelo seu comentário.
De facto, a qualidade dos contextos de prestação de cuidados (familiar e extrafamiliar), e das experiências que neles são disponibilizadas às crianças, é crucial para o desenvolvimento das mesmas, principalmente para as que, por diversos fatores (biológicos e/ou ambientais) se encontram em situação de risco. No entanto, o conceito de qualidade é multidimensional e, de acordo com diferentes perspetivas, pode assumir diferentes operacionalizações. Assim, numa próxima mensagem é minha intenção abordar esta questão, isto é, o conceito de qualidade e a sua influência no desenvolvimento das crianças.
Um abraço