Autoconceito e autoestima são termos muitas vezes empregues de modo indiferenciado. Contudo, são conceitos distintos, embora possam estar relacionados [1, 2, 3, 4, 5]. O autoconceito direciona-se para uma componente mais cognitiva e descritiva, ligada à perceção de competência em domínios específicos, e que se vai formando através das experiências e vivências no meio e das interpretações sobre as mesmas [5, 6]. A autoestima tem já uma componente valorativa, uma vez que se refere a apreciações mais gerais sobre o valor global como pessoa [3]. Autoconceito e autoestima são, assim, duas entidades psicológicas distintas sendo o autoconceito multidimensional e descritivo, direcionado para áreas e competências específicas e a autoestima unidimensional, geral e valorativa.
Quando e como se desenvolve a autoestima nas crianças?
De acordo com Harter [1, 2, 3], só a partir dos oito anos é que as crianças conseguem fazer julgamentos globais enquanto pessoas. Antes dessa idade, o seu desenvolvimento e caraterísticas de pensamento não lhes permitem ter uma ideia global que integre a forma como se sentem em diferentes aspetos (e.g., físico, relações, aprendizagem) [2, 3]. Tem-se verificado que crianças com menos de 8 anos de idade podem conseguir pronunciar-se sobre um autoconceito geral [7]. Contudo, esta é uma apreciação genérica, parece não resultar de uma integração dos seus autoconceitos específicos e, muitas vezes, até pode oscilar consoante acontecimentos particularmente salientes.
Apesar de esta incapacidade de as crianças integrarem autoperceções específicas numa representação mais global, elas podem expressar, pelo seu comportamento, sentimentos pessoais mais ou menos positivos. Isto é visível tanto pela confiança, curiosidade, iniciativa e independência que demonstram para aderirem e explorarem contextos e atividades, como também pela forma como reagem a mudanças ou situações de maior stress [3].
Como é o autoconceito das crianças?
Desde cedo as crianças desenvolvem autoavaliações específicas para áreas e domínios distintos, que se vão diferenciando e tornando cada vez mais complexas com a idade [3, 5, 6, 7, 8]. Contudo, nesta faixa etária, estas autoavaliações são, muitas vezes, irrealisticamente positivas. Isto acontece, por um lado por ainda terem dificuldade em fazer a distinção entre o seu desejo e a sua competência. Por outro lado, as limitações que ainda têm em lidar com informação diversificada causam-lhes dificuldades para integrarem informação contraditória sobre si (bons numas coisas e noutras não), e também as opiniões das pessoas que as rodeiam. Esta visão positiva nas crianças nestas idades, tem um importante papel motivacional e de apoio emocional que contribui para um desenvolvimento saudável [3].
Qual é a importância do jardim de infância para o autoconceito e autoestima das crianças?
O jardim de infância pode assumir um papel importante na estruturação do autoconceito das crianças e na construção das bases para a sua autoestima. As próprias Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar – OCEPE [9] são claras quando referem que o/a educador/a deve promover o desenvolvimento de sentimentos de segurança e da autoestima das crianças e um ambiente educativo relacional que transmita segurança e em que a criança seja escutada e valorizada [9].
Assim, há três caraterísticas nos contextos de educação de infância que suportam esta sua importância: o seu caráter social, as múltiplas oportunidades que proporciona e uma abordagem centrada na criança.
Contextos marcadamente sociais – No jardim de infância as crianças interagem com muitas outras crianças e com vários adultos. Um dos interlocutores centrais é o/a educador/a, não só na sua relação direta com a criança, mas também na forma como gere as relações interpessoais positivas e construtivas no grupo. Tem assim um papel importante ao cuidar da componente afetiva das relações, criando um ambiente sem culpas, nem medos e em que a criança tenha confiança para experimentar e errar, receba feedback construtivo e se sinta desafiada por propostas e oportunidades que despertem a sua curiosidade e incentivem a vontade de explorar [9,10].
A oportunidade de interagir com os pares, tomar em consideração os seus pontos de vista, observar como agem, comparar, argumentar e explicar são certamente oportunidades que facilitam uma compreensão do que se faz, como se faz, e como se evolui, em paralelo com o gradual desenvolvimento de competências [3, 9].
Contextos ricos em novas oportunidades – As rotinas nos jardins de infância integram tanto momentos mais estruturados, com atividades mais dirigidas, como momentos mais livres, de exploração. Em cada um deles, as atividades podem ser diversificadas, permitindo que a criança experiencie situações onde desenvolve competências de âmbito muito diverso, tanto relacionais, como comunicacionais ou de conhecimentos diversos (e.g. matemático, língua). Esta multiplicidade de oportunidades vai ajudar no desenvolvimento das várias facetas do seu autoconceito (e.g., comportamento, amizades, físico, escolar). É assim também que vai ganhando e demonstrando mais ou menos confiança, iniciativa e curiosidade e também mais ou menos segurança para enfrentar novos desafios e situações [3].
Contextos que valorizam a agência da criança e o brincar – Nas OCEPE [9] é referido que “Ao ser protagonista … a criança é ouvida e participa nas decisões que têm influência na sua vida e no seu mundo. Este sentimento de agência faz parte da construção da sua identidade e autoestima” (p.106). Esta agência permite-lhe criar uma imagem mais clara de quem é, e também a leva a desenvolver sentimentos de competência.
Paralelamente, o brincar é uma atividade natural da criança, desafiante, prazerosa, que permite envolvimento pleno e aprendizagem holística e significativa [9]. Ao brincar, a criança desempenha diferentes papéis, sem se focar no resultado, tendo oportunidades para explorar, experimentar, tentar novas coisas e situações. Sente-se livre de avaliações, constrangimentos ou preocupações [11, 12] permitindo, assim, que vá desenvolvendo perceções mais ou menos realistas do que consegue e não consegue fazer, arriscando e testando os seus limites.
Entre os 3 e os 5 anos as crianças estão ainda numa fase inicial da estruturação da sua imagem enquanto pessoa, numa fase em que o autoconhecimento é ainda bastante ‘maleável’, tanto em termos de formação do autoconceito como na confiança nas suas ações e nos sentimentos sobre si. É, assim, de extrema importância o que vão experienciando quotidianamente, sozinhas e nas interações e partilhas com aqueles que lhe são próximos, e que o façam em ambientes positivos, de suporte afetivo e apoio ao seu desenvolvimento e aprendizagem.
Como pode a sua ação contribuir para o desenvolvimento do autoconceito positivo e da autoestima das crianças?
- Cuida do feedback que dá, de modo que este não seja penalizante, mas construtivo e apoiante?
- Evidencia as conquistas e avanços feitos por cada criança, de modo a que ela se vá apercebendo das suas competências?
- Aceita o erro como fazendo parte do processo e permite que as crianças o sintam como algo natural, que é necessário para aprender?
- Promove interações criança/criança e adulto/criança apoiantes e de confiança?
- Dá espaço e tempo para que as crianças deem as suas opiniões, sejam escutadas, participem na tomada de decisão e compreendam os efeitos das decisões que tomaram?
- Permite que as crianças desenvolvam as suas competências, respeitando o ritmo de cada um?
Referências
[1] Harter, S. (1996). Historical roots of contemporary issues involving self-concept. In B. Bracken (Ed.), Handbook of self-concept: Developmental, social and clinical considerations (pp. 1-37). John Wiley & Sons.
[2] Harter, S. (1999). Construction of the self: A developmental perspective. Guilford Press.
[3] Harter, S. (2012). Introduction: a contemporary approach to self-development. In S. Harter (Ed.), The construction of the self: Developmental and sociocultural foundations (pp. 1–25). Guilford Press.
[4] Marsh, H. W., Martin, A. J., Yeung, A. & Craven, R. (2017). Competence self-perceptions. In A. J. Elliot, C. Dweck, & D. Yeager (Eds), Handbook of competence and motivation: Theory and application (pp. 85–115). Guilford Press.
[5] Marsh, H. W., & Shavelson, R. J. (1985). Self-concept: Its multifaceted, hierarchical structure. Educational Psychologist, 20, 107-125. https://doi.org/10.1207/s15326985ep2003_1
[6] Shavelson, J., Hubner, J. J., & Stanton, G. C. (1976). Self-concept: validation of construct interpretations. Review of Educational Research, 46, 407–442. https://doi.org/10.3102/00346543046003407.
[7] Marsh, H. W., Craven, R. G., & Debus, R. (1991). Self-concepts of young children 5 to 8 years of age: Measurement and multidimensional structure. Journal of Educational Psychology, 83(3), 377-392.
[8] Harter, S., & Pike, R. (1983). The Pictorial scale of perceived competence and acceptance for young children. University of Denver
[9] Lopes da Silva, I., Marques, L., Mata, L., & Rosa, M. (2016). Orientações curriculares para a educação pré-escolar. Ministério da Educação – DGE.
[10] Ryan, R. M., & Niemiec, C. (2009). Self-determination theory in schools of education. Can an empirically supported framework also be critical and liberating? Theory and Research in Education, 7(2), 263–272. https://doi.org/10.1177/1477878509104331
[11] Owocki, G. (2000). Literacy through play. Early Childhood Today, 15(3), 17-20.
[12] Mata, L. (2010). Brincar com a escrita- Um assunto sério. Cadernos de Educação de Infância, 90, 31-34.